domingo, 10 de agosto de 2008

TESTAMENTO DE GILGAMESH

"Alone, alone all, all alone,

Alone on a wide, wide sea

And never a saint touch pity So far

on my soul in agony.”

S.T. Coleridge

"Gilgamesh, por onde vagas tu? A vida que buscas, não a encontrarás. Quando os deuses criaram a humanidade, colocaram ao seu lado a morte, retendo a vida em suas próprias mãos...”

Epopéia de Gilgamesh

(aprox. 3.000 A. C.)

A vós, deuses estrangeiros, afirmo que existimos. Sim! Vivemos à vossa mercê. Vivemos e almejamos às alturas. Somos humanos, somos falíveis, por vezes vulgares, mas em nosso peito vibra a chama da vida, da Divindade, não da vossa pobre divindade. Que sois poderosos admitimos, tendes o bastante para eleger potentados e arruinar reinos, mas não o suficiente para atingir o que nos há de mais íntimo, de mais pungente. Tocais no que nos é precioso, retirais a fortuna ao bem-nascido, a saúde ao humilde, o amor ao amante e a sanidade ao sábio.

E dizeis não saber o que há de tão nobre, de tão profundo, de tão maravilhoso nos seres humanos, que com tão pouco tempo para viver - Ó, repugnantes Imortais - com tão pouco em mãos, conseguem alvejar com suas setas o Sol Central? O que os faz buscar tão desesperadamente por um sentido, criar e acalentar metas, sendo que vosso labor é industriar-lhes a ruína? O que vos digo, é que guardais em vossos suplícios a semente da vossa própria ruína, podeis nos arrebatar, ceifar-nos aos milhões, abrasar-nos, separar-nos, confundir-nos por tempos, mas não podeis enganar-nos para sempre, ou sequer desviar-nos de nossa senda. Não conseguis rapinar nossos sonhos, e sonhamos. Não sois capazes de arrancar-nos os sentimentos, e sentimos. Sois incapazes de doar, de criar, sois bem mais cegos que a própria loucura.

Não, odiosos deuses da Fortuna, não sois injustos como tantos pensam; sois irracionais, caprichosos ... cruéis em vosso tédio. Desmedidos, dispondes do suor ainda não vertido e da criança não nascida. E ainda assim espojai-vos como grandes e gordos lagartos em vossos templos ... fartai-vos de oferendas e deleitai-vos com o aroma do incenso daqueles a quem regeis inflexíveis. Vós sois menos admiráveis que desprezíveis, corrompeis o ar com vossa presença e tornais inférteis os campos de vosso descanso.

A vós, hediondos, agradeço unicamente pela sanha que possuís pela infelicidade de outrem, pois o quanto mais transtornais esta existência, tanto mais escorremos por entre vossos dedos, milhares a cada dia, e adentramos a um estado no qual não conseguis afinal, atingir-nos de forma alguma. A vós, Astorete, Mitra, Baal, Moloque, negro Dagon, a vós, rancorosas e invejosas divindades ancestrais, senil escória, deixo-vos a carga doce de meu asco. O desdém do viajante que tateia às cegas ao encalço daquela abençoada Luz, um dia vislumbrada além de onde jamais podeis sonhar. A vós, deixo a certeza de que há tronos mais elevados que os vossos, há criaturas (atentai bem: criaturas) mais puras que vós, e há poderes mais sagrados que os vossos. Do nada viestes e a ele tornareis.

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