domingo, 10 de agosto de 2008

AMANHECER

“Aquele amor, aquela luz, aquela bênção que a maldição eclipsante do nascimento não consegue sufocar agora brilha em mim, consumindo as últimas nuvens da fria mortalidade.”

P. B. Shelley

Ele acorda com o latido de cães à janela. Seus olhos pesam e procura o relógio. Cinco e meia ele pensa, e sorri... “Que cidade é esta? Que dia é hoje? Que diferença faz?” Estica a mão e traz à boca um cigarro, acende e observa, interessado, as evolutas delicadas que a fumaça faz no ar parado do quarto de hotel. Hotel de terceira, hotel de puta, mas no fim das contas, uma cama macia e um banheiro. No calendário de oficina na parede, uma beleza fictícia finge excitação diante de olhares famintos (ou seria beleza faminta e olhares fictícios? Não importa...). Ainda assim, inútil e vulgar, cumpre sua missão de informar datas de dois anos atrás.

“Livre” ele pensa, e novamente sorri, “Li–vre; L-I-V-R-E...” “Free at last” ele devaneia, assim, em inglês mesmo, parafraseando Martin Luther King. Que é feito do escritório e sua rotina vazia, tóxica e seus atores, preocupados em agradar a um Leviatan invisível e eternamente silencioso? Onde está a estéril gente sem profundidade e de olhos mortos, que caminha (fantasmas entre homens) e “vive” em seus ciclos mensais de suor, frustração e conta bancária tísica? E a faculdade, onde espíritos amedrontados aferram-se a pequenas verdades à giza de cruz e regurgitam gotas nem sequer digeridas de conhecimento, como quem desfia um rosário? De uns poucos, de alma livre, ele sabe que terá saudades. Estes poucos, o sal da terra, tornaram sua estada naquelas plagas suportável, por vezes agradável.

Um ressonar a seu lado pede sua atenção para o melhor fruto que aquelas terras poderiam lhe oferecer. Ele afaga o corpo elegante como de uma serpente e ternamente beija o rosto de sua companheira, e distraído, cuidadoso, escolhe o nome, o deus, que usará, o destino que trilhará na eternidade insondável de um outro dia. Não haveria necessidade de esconder o nome que desde criança disseram ser o seu (é até simpático) mas, uma vez adotado o manto de estrangeiro e de peregrino, a busca de pátria prescinde uma outra equivalente, esta, interior.

Ele se sente meio dramático, meio patético, porém quem, afinal, haveria de julgá-lo? “Temos um ao outro” considera “filme na câmera, e mais uma cidade novinha pela frente. Definitivamente, este será um bom dia!”. Mais tarde mergulharão no lago calmo de rostos cotidianos levando sua pergunta nos olhos: “Será este o terreno em que fixaremos raízes e frutificaremos?”

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