domingo, 14 de setembro de 2008

Confissões de um (quase) terrorista

No final de 1983, minha família, que passava por uma de suas cíclicas fases de crise financeira, bastante comuns naquela época de sucessivos planos econômicos, mudou-se do apartamento que ocupávamos há apenas seis meses para uma casa na Zona 04 de Maringá. Enfim voltávamos às origens, minha mãe dizia com uma convicção totalmente artificial. A casa era estranha e, juro por Deus que era uma das mais feias e pobres da vizinhança pujante, habitada por profissionais liberais e funcionários públicos.

Éramos uma pequena família constituída por minha mãe, então com seus generosos trinta e três anos, jovem e desejada, seu casal de irmãos mais novos, meus tios, ele com dezoito e ela com catorze, e eu, então beirando os nove anos. Como já disse, eram tempos difíceis. Apenas minha mãe e meu tio trabalhavam. Minha mãe, precocemente convertida em chefe de família, com o falecimento de meus avós, o que lhe acarretara assumir a tutela dos irmãos mais jovens, dividia seu tempo entre três ou quatro empregos, entre hospitais, onde era técnica de enfermagem, o serviço no instituto de previdência e alguns bicos como corretora de imóveis. Havia pouco tempo livre para ela, e quando havia, ela estava atarefada nos lides da casa. Meu tio trabalhava em uma loja de departamentos. Fora promovido recentemente ao cargo de vendedor, mas sua timidez lhe garantia uma quota menos que satisfatória de vendas, o que comprometia o rendimento no final do mês.

Minha tia e eu estudávamos, como bolsistas, em um dos colégios religiosos particulares da cidade. Uma boa escola, uma boa educação, dizia mamãe. Então, todos os dias éramos exemplares de uma espécie curiosa na escola. Éramos pobres e católicos em uma população acentuadamente classe média e protestante. Claro, na época eu não tinha a menor consciência disso, mas hoje imagino o quanto isso pesava em nossas relações sociais, ou em sua escassez. Não éramos o que podia ser classificado como “muito populares”, mas enfim, eu me destacava em algumas áreas e deixava muito a desejar em outras. Minha tia possuía seus atributos físicos que a tornavam relativamente popular entre os garotos e garotas de sua idade, de forma que este choque era sentido de maneira diferente por ela.

Para manter-me a salvo das outras crianças, meu círculo social era muito reduzido e composto de relações bastante superficiais. Por outro lado, em casa, ao contrário de me sociabilizar com as poucas crianças da vizinhança, eu me mantinha em meio aos livros da já farta biblioteca que minha mãe e meu tio faziam questão de abastecer a qualquer custo desde que notaram minha afinidade com a literatura. Verdade seja dita que a leitura sempre foi um hábito que beirava uma obsessão meticulosamente cultivada em nosso curioso núcleo familiar. Era fácil me refugiar nos livros, afinal eu era filho de uma mãe super protetora, era pobre em uma vizinhança já anteriormente citada como “pujante”, era um gordinho chato, que falava engraçado com um português impecável (subproduto das intermináveis horas de leitura), resumindo, era o protótipo do que hoje nós conhecemos como “nerd”.

Horrores de guerras, ficções históricas, ficcionistas de antecipação (eu tinha uma particular predileção por Júlio Verne), clássicos gregos, renascentistas italianos, nenhum assunto era tabu em nossa biblioteca, nada era proibido. Romances de espionagem, poesia, tanto boa quanto ruim, era consumida com voracidade naquela casa em que nem sempre se tinha energia elétrica e as compras de mantimentos para o mês duravam, em geral, duas a três semanas. Mas vivíamos felizes. Minha infância era muito feliz.

Minhas primeiras grandes oportunidades para me aventurar no mundo real vieram com o dia em que eu não tinha mais livros para ler em casa. Digamos que minha mãe foi forçada a relegar um pouco a segundo plano sua superproteção sobre mim, para permitir que eu freqüentasse a biblioteca municipal de minha cidade. De alguma maneira, dona Cleide achava que se a minha curiosidade cessasse de ser alimentada pelos livros, acabaria sendo tragada para o abismo do crime. Risos. Mães são todas, todas iguais.

Assim sendo, minhas aventuras semanais na biblioteca municipal me descortinaram um mundo amplo, virtualmente inesgotável. E meus dias eram agitados, em companhia de Ivan, o terrível, Catarina de Médicis, Nicolau Maquiavel, Arthur Clarke, Asimov, Papus, Trotsky, Malatesta, Madame Blavatsky, H. P. Lovecraft, Aristóteles, Herman Melville, entre outros. Boas companhias, que me falavam sempre sobre o modo como concebiam o mundo e tudo que havia nele.

Ao contrário do que se poderia supor ou melhor, do que minha mãe esperava, o desempenho na escola estava sempre beirando o pífio nas disciplinas que não me interessavam. Diga com honestidade, você preferiria acompanhar Hemingway em uma estadia em Paris ou ficar decorando os rios da Bacia do Amazonas? Melhor: você passaria as suas tardes acompanhando o caos que Heitor lançou sobre Agamenon e os aqueus junto aos navios enquanto Aquiles permanecia em sua tenda, irritado por ter sido privado de sua presa de guerra ou... ficaria resumindo A cabana do pai Tomás para uma verificação de leitura na semana seguinte? Juro que até hoje não faço a menor idéia de como era a moradia do simpático ancião.

Era inconcebível para minha mãe que as minhas notas fossem menos que excelentes. E então o imponderável aconteceu; dando ouvidos a uma psicóloga à qual me levara, sob recomendação da escola, minha mãe, (veja você, minha própria mãe!!!) tentou me privar de minhas leituras. Não de todas, obviamente, apenas das que fossem consideradas adultas demais para mim. Como se, caso fossem realmente prejudiciais para mim, o estrago já não estivesse feito. Desta forma, meu privilégio de biblioteca foi, senão suspenso, pelo menos reduzido drasticamente e monitorado com muita atenção. Livros, discos e fitas infanto-juvenis surgiram “ex nihil” e, até onde sei, morreram virgens de uso.

Foi nessa época que estreei em minha vida dupla. As notas, as mantinha cuidadosamente acima da média, eu havia aprendido a lição. Quanto à Biblioteca Municipal, as visitas ostensivas de sábado à tarde, rigorosamente monitoradas eram suplementadas por idas clandestinas praticamente diárias. Risos. Claro que, até hoje, se você perguntar a minha mãe porque eu ficava tanto tempo ausente de casa, todas as tardes, ela vai dizer que eu havia ido à natação, depois esticando em casa de algum amigo. Pobres mães, elas foram feitas para serem protegidas de nossas condutas por piedosas mentiras. Mães são criaturas delicadas, sua compleição frágil não suportaria nossas verdades, por isso precisamos sempre tecer um delicado casulo de inverdades, fantasias e omissões habilidosamente elaborado para que sua felicidade e sua fé na espécie humana permaneçam intactos.

Meu grande aliado e benfeitor, nesta época era meu tio, a esta altura, um respeitável acadêmico do curso de história da universidade estadual de minha cidade. Isso considerando que existia, na época, esta coisa chamada acadêmico respeitável de História. Antes que você me queira ver linchado, eu explico, na época, o país era ainda “noveau arrivé” nesta coisa apelidada de “democracia”, mas a mentalidade de minha cidade ainda estava impregnada de ranços do período ditatorial e o curso de história era reputado como um antro de comunistas, o que em nossa cidade equivalia dizer agitadores, maconheiros, libertinos e algo de vagamente satanista. Risos. Ignorando as recomendações e ameaças de minha mãe, sempre movida pelo mais sincero zelo por seu filho, ele contrabandeava para minha bolsa Vico, Montesquieu, Bobbio, Foucault, Hilário Franco Jr., Nietzsche, Descartes, Morus, Erasmo de Rotterdan, sem falar dos incendiários... Engels, Marx, e por aí vai. Risos.

O grande problema é que nesta época eu já estava em uma fase hormonalmente homicida, conhecida como adolescência. Sentia como se a vida inteira eu houvesse coletado ferramentas, instruções de montagem e uma quantidade enorme de Plutônio e que, finalmente meus hormônios houvessem dado o sinal verde para que eu explodisse um hemisfério do planeta ou morresse tentando. Sabe como funciona isso, não? É Nietzsche que se conecta ali com Foucault, que se liga a Malatesta,que nega Homero, que é refletido por Aristóteles que aciona Santo Agostinho, que provoca Mostesquieu, que assegura Descartes, e vai acelerando e liberando energia com Russel e jorra tudo, já atingindo massa crítica em Marx e sendo absorvido pela testosterona toda presente na corrente sanguínea.

O resultado disso tudo é tão difícil para explicar como para entender, de forma que teremos que deixar esta história para uma outra oportunidade, entretanto uma coisa posso afirmar, se dona Cleide sequer sonhasse que o que, em primeiro momento, pareceu uma boa forma de controle comportamental, acabaria se desaguando em uma espécie estranha de delinqüência juvenil, talvez ela tivesse preferido manter-me semi-letrado e bonzinho.

domingo, 10 de agosto de 2008

TESTAMENTO DE GILGAMESH

"Alone, alone all, all alone,

Alone on a wide, wide sea

And never a saint touch pity So far

on my soul in agony.”

S.T. Coleridge

"Gilgamesh, por onde vagas tu? A vida que buscas, não a encontrarás. Quando os deuses criaram a humanidade, colocaram ao seu lado a morte, retendo a vida em suas próprias mãos...”

Epopéia de Gilgamesh

(aprox. 3.000 A. C.)

A vós, deuses estrangeiros, afirmo que existimos. Sim! Vivemos à vossa mercê. Vivemos e almejamos às alturas. Somos humanos, somos falíveis, por vezes vulgares, mas em nosso peito vibra a chama da vida, da Divindade, não da vossa pobre divindade. Que sois poderosos admitimos, tendes o bastante para eleger potentados e arruinar reinos, mas não o suficiente para atingir o que nos há de mais íntimo, de mais pungente. Tocais no que nos é precioso, retirais a fortuna ao bem-nascido, a saúde ao humilde, o amor ao amante e a sanidade ao sábio.

E dizeis não saber o que há de tão nobre, de tão profundo, de tão maravilhoso nos seres humanos, que com tão pouco tempo para viver - Ó, repugnantes Imortais - com tão pouco em mãos, conseguem alvejar com suas setas o Sol Central? O que os faz buscar tão desesperadamente por um sentido, criar e acalentar metas, sendo que vosso labor é industriar-lhes a ruína? O que vos digo, é que guardais em vossos suplícios a semente da vossa própria ruína, podeis nos arrebatar, ceifar-nos aos milhões, abrasar-nos, separar-nos, confundir-nos por tempos, mas não podeis enganar-nos para sempre, ou sequer desviar-nos de nossa senda. Não conseguis rapinar nossos sonhos, e sonhamos. Não sois capazes de arrancar-nos os sentimentos, e sentimos. Sois incapazes de doar, de criar, sois bem mais cegos que a própria loucura.

Não, odiosos deuses da Fortuna, não sois injustos como tantos pensam; sois irracionais, caprichosos ... cruéis em vosso tédio. Desmedidos, dispondes do suor ainda não vertido e da criança não nascida. E ainda assim espojai-vos como grandes e gordos lagartos em vossos templos ... fartai-vos de oferendas e deleitai-vos com o aroma do incenso daqueles a quem regeis inflexíveis. Vós sois menos admiráveis que desprezíveis, corrompeis o ar com vossa presença e tornais inférteis os campos de vosso descanso.

A vós, hediondos, agradeço unicamente pela sanha que possuís pela infelicidade de outrem, pois o quanto mais transtornais esta existência, tanto mais escorremos por entre vossos dedos, milhares a cada dia, e adentramos a um estado no qual não conseguis afinal, atingir-nos de forma alguma. A vós, Astorete, Mitra, Baal, Moloque, negro Dagon, a vós, rancorosas e invejosas divindades ancestrais, senil escória, deixo-vos a carga doce de meu asco. O desdém do viajante que tateia às cegas ao encalço daquela abençoada Luz, um dia vislumbrada além de onde jamais podeis sonhar. A vós, deixo a certeza de que há tronos mais elevados que os vossos, há criaturas (atentai bem: criaturas) mais puras que vós, e há poderes mais sagrados que os vossos. Do nada viestes e a ele tornareis.

DE ESSÊNCIAS E FORMAS...

Que respostas há em teus olhos, que anulam minha ânsia de perguntar? As sílabas que teu silêncio calmo profere despem meu ser de sua habitual arrogância, de seus escudos e suas máscaras e extático, fito tua imensidão - Oceano, deserto, montanha e firmamento - que suave ecoa na imensidão oculta aquém das praias do consciente. “Fito tua imensidão”, disse, mas com olhos semicerrados contemplo tua face, como se em demasia, teu bálsamo em veneno se transmutasse, e cego quedaria frente à tua exuberância.

De teus segredos, mãe, nada sei, a não ser o que tua nudez exposta aos ventos sussurra em meus ouvidos. “Abre, filho, abre os olhos de tua alma e deixa teu espírito sedento fartar-se em minha serenidade. Suga do leite que, cristalino aflora de meu seio. Corre, filho, flui por minha veias ancestrais e comungue de meus mistérios. Afaga minha pele com teus passos e respira do hálito verde de meus prados. E ausente de ti, recebe meu legado.”

E sempre retorno aos lides frívolos da carne. O véu encobre meus olhos, protegendo aos contornos vivos de teu relevo e ao aconchego de teu ventre da profanação de um olhar despido de transcendência. E uma vez mais, revertes-te à condição de oceano, deserto, montanha e firmamento...

Até que o ciclo se reinicie e o chumbo inculto, relembre sua essência e sublime-se em ouro.

SOMOS TODOS CRIANÇAS BRINCANDO À BEIRA MAR

(para Jussa Winsch)

Somos todos crianças brincando à beira mar. Com a areia molhada construímos casas e pontes. Alguns de nós fazemos nossas pequenas e rústicas fortalezas próximas demais do capricho das ondas, onde são rapidamente aniquiladas. Então choramos, choramos a desilusão, choramos a perda de impérios, choramos castelos de areia.

Com o passar do tempo adquirimos mais experiência e nos distanciamos do tumulto das paixões e nosso trabalho torna-se mais suntuoso, os sinais da habilidade começam a se manifestar. Porém a subida das marés, traz o caos após cada ciclo, encerrando estes novos sonhos. E uma vez mais revoltamo-nos com a crueldade do destino que nos abandonou à mercê dos ritmos da vida.

Afastamo-nos mais da água e, quase adolescentes, criamos com tranquilidade torres e arquitraves, oitões e cornijas góticas. Esculpimos criaturas marinhas e seres fantásticos, mas a maresia nos leva embora sereias e palácios. O vento os corrói e desfigura, porém aqueles que até o momento mantém-se firmes, modelando e remodelando diariamente, experimentam uma estranha sensação. É neste dia que a missão realmente começa, pois percebemos que ao contrário da areia que não comporta obras perenes, da essência humana são os lides da rocha maciça. Abandonamos então a praia sem olhar para trás e vamos para outras terras, onde nossas obras desafiarão o tempo.

Alguns, em avançada idade, à orla marítima retornarão para instruir aos futuros arquitetos. Estes, que são os mestres de ofício, devotam o seu melhor à continuação da empreita. Contudo, não importa quão longe cheguemos, começaremos sempre com castelos de areia.

O RETORNO DO SALMÃO

Agora, que nossa desabalada corrida em busca de valores fúteis nos tem levado à negação de tudo que é importante. E que nossas vozes mais sábias se calaram, ou foram caladas... Agora, seu silêncio é ensurdecedor. É reconfortante saber que estou retornando a ti. Tua mão me embala, teu sussurro me acalma. Dizes, e agora estou pronto a aceitar, que o mais importante é o amor. Não o amor de dois copos, este cujo aroma lembra somente atração, desejo, mas aquele sem fronteiras, sem contato.

Machucaram-me, sabes? Ferir-me-iam muito mais se teu exemplo não me tivesse acompanhado cada passo, identificando as armadilhas. Mas agora que a antiga magia uma vez mais está entre nós, canta-me a velha canção ao ouvido. A canção de cura. Uma canção que cure o corpo e liberte a alma, que diga como é bom se estar tornando ao lar. Agora, que tua presença é forte em mim, tudo sei, nada me é oculto. Uma infinidade de coisas novas se desenrola a meus olhos, tudo se renova.

Agora que nada quero, ironicamente tudo tenho. Minha alma toca o absoluto e entra em combustão no processo, como estrela cadente, queimando na entrada da atmosfera, como orvalho depositado no oculto da relva. Silenciosamente sorrio e comungo contigo. Silenciosamente as questões se fecham e se resolvem. Agora que somos um novamente, descubro que nunca nos afastamos.

Tua luz brilha em meus olhos... quase me cega, mas ainda assim, eu corro com o vento às costas. Sou eu que te chamo agora.

CÂNTICO ERÓTICO

Ela gemeu. Sim, e por Deus, como gemeu. E desejou gemer mais e mais alto. Desejou gritar, gritar de alegria, de prazer. Gritar mais e mais alto. Não, não pôde gritar, não poderia, e então abafou seus gritos no travesseiro, afundou seu rosto e gritava abafado. Chorava, mas não de dor, chorava apaixonada pela vida, chorava embalada, consolada pelos suaves solavancos de sua cavalgada. Eles a quiseram e nesta noite ela os queria a todos dentro de si. Nesta noite ela era a Grande Mãe, de cujo útero todos procedem e a ele, simbolicamente, todos se dirigem. Ela era em uma, todas as mulheres que já existiram e que ainda existirão. Hera, Pandora, Lorelei e Medéia. Ela era, nesta noite, a Grande Fêmea, devoradora de homens, misteriosa e faminta. Suas mãos crisparam-se nos lençóis, rasgando-os, e ainda assim ela queria mais, pois ela era todos e cada um dos grandes mitos femininos, e dos pequenos também. Aliás, principalmente dos pequenos, ela era cada uma das lendas sussurradas das grandes e sagradas divinas meretrizes...

Que venham as legiões escarlates de César, que venham as hordas de Átila – pensava – sou esfinge de esfíncteres aveludados, sou Jocasta, Penélope, Atena e Ártemis. Nada que é masculino me surpreende, nada me é estranho. E a todos ela acolhia, e a todos amamentava, às duplas, aos trios, aos bandos – ou era que parecia – íncubos às suas costas, ao seu redor, mas ela era Lilith, a rainha dos demônios, ela os comandava, ela os convergia às salas de seu palácio. Ela era uma santa, martirizada por hostes de vândalos. Ela era a Maria Madalena Universal. Ela era mais que uma mulher, ela era o próprio feminino, mãe, mulher, irmã, esposa, amante, fêmea, santa, concubina, poeta, súcubo, louca, homicida e genocida. Nela estavam encarnadas todas as mulheres do mundo e, nesta noite, somente nesta noite, o mundo e a humanidade eram dela.

A HORA DO LOBO

Quem nunca sentiu seus negros desejos inconfessáveis açoitando-lhe noite adentro? Só as ovelhas, que são totalmente felizes. Quando tais pensamentos se lhes passam, imediatamente persignam-se. Têm a certeza vã de que pensamentos de outrem se lhes invadiu a cabeça. Pensamentos de lobo. Mas não, pobres felizes ovelhas. Mal sabem que a escuridão nos é indissociável. E quando o sol se põe só, quando nos recolhemos, só a luz que conseguimos reter interiormente pode-nos servir de lume, ainda que seja somente para dar contornos vivos aos horrores adivinhados.

Viver a verdade foi-lhes dito e elas pregam. A que verdade se referem? Que sabem ovelhas sobre a verdade? Que verdade lhes foi dita Conhecem elas seus demônios vermelhos da luxúria, ou os dourados da ganância, o escarlate da ira ou o verde da inveja? Não, as pobres balidoras, só sabem do que é seu... o pasto abundante e a hora em que o lobo se lhes insinua nos sonhos.

Elas não sabem que de si mesmas não há fuga. E que em si mesmas há a cura, a luz bendita da compreensão. A luz que a tudo desnuda e revela.

Gentis deliciosas ovelhas, só conhecem a grama verde e a hora do lobo.

Quanto maior é o humano, tanto maior é sua sombra

A LOIRA ARQUETÍPICA

ou Paralelo 23

(apud Henry Miller)

Deus salve as loiras. As loiras terroristas, fascistas, fatais. As loiras que não negociam termos, não dão quartel nem aceitam nada que não a rendição incondicional. As loiras que combatem até a exaustão, e que não fazem prisioneiros. As mesmas loiras que enlevadas, encharcadas, gemem versos, gritam obscenidades ou arrancam-nos o couro das costas...

E as loiras transcendentais? Belas loiras bem maiores que a vida, com uma legião de súcubos a ferroar-lhes as entranhas, a inocular-lhes o veneno da perversão, com o fogo do inferno a queimar em sua boceta. Estas... Ah, estas, mon cher... Quando dormem, dormem como anjos, dormem como lobas em meio aos restos de suas presas. Dormem o sono dos justos.

Mas as grandes loiras que povoam nossa imaginação. Que têm um verme em brasa contorcendo-se no cu, as loiras imemoriais que, imensas, aconchegantes e fortes, ofertam-se, espalham-se de quatro e uivam à lua ao primeiro contato em suas partes, sugam-nos até à última gota, mastigam-nos até à última fibra. Estas loiras voluptuosas, tesudas, devassas, loiras malditas, maravilhosas, abençoadas. Estas loiras mitológicas, mon ami, devem estar extintas ou muito bem guardadas em algum harém pois (desgraçados de nós!) nunca mais as vimos nem delas ouvimos falar. Que saudades!!!

ALIMENTA MEUS OLHOS

“Então Deus os abençoou e lhes disse: Frutificai e multiplicai-vos; enchei a terra e sujeitai-a; dominai sobre os peixes do mar, sobre as aves do céu e sobre todos os animais que se arrastam sobre a terra.

Gênesis 01:28

“Pára, momento que passa... és tão belo!”

Goethe

Vem de súbito e, sem luar ou neon, verte o corriqueiro em extraordinário. Jantar, sorvete, café, cigarros, prosa... Prosaico até à medula, mas numa incomum empatia, sabemos o que o outro quer. E o que queremos é o mesmo.

As palavras, ao ritmo da velha noite, nos levam aquele cantinho escuro, úmido e quente de onde toda vida provém. Rimos naquela noite, embriagados pelo som de nossas vozes, que ganhavam novos nuances. Brinquedos de gente grande. Vivemos aquela noite como nunca. Vivemos aquela noite como poucos. E o fizemos como os dois últimos seres humanos (ou os dois primeiros), com a ânsia da divina tarefa de povoar a face da Terra.

Madrugada chega e já nos consumíamos em um fogo nunca visto. Tudo era chamas. Tudo ardia. Sem tu ou vós, o que restava era a pele. E o que há mais profundo que a pele? Só sei que fodemos lindamente naquela noite selvagem, linda, doce, como animais, como loucos. Fodemos sem nos tocar, só com os olhos. Só com os olhos.

Daquela noite, daquela noite insana, vertiginosa, maravilhosa, uma pergunta vem me atormentar: Como vou me perdoar por não Ter-te tomado o beijo que nós queríamos? Sim, pois por mais lindo que tudo tenha sido, a pele chama a si a pele. A carne clama pela carne e não há nada que torne mais amarga a recordação dos doces momentos que um eterno seria. Vem para mim. Ah, vem! Alimenta meus olhos. Minha fome de você é urgente. Você me é urgente.

AMANHECER

“Aquele amor, aquela luz, aquela bênção que a maldição eclipsante do nascimento não consegue sufocar agora brilha em mim, consumindo as últimas nuvens da fria mortalidade.”

P. B. Shelley

Ele acorda com o latido de cães à janela. Seus olhos pesam e procura o relógio. Cinco e meia ele pensa, e sorri... “Que cidade é esta? Que dia é hoje? Que diferença faz?” Estica a mão e traz à boca um cigarro, acende e observa, interessado, as evolutas delicadas que a fumaça faz no ar parado do quarto de hotel. Hotel de terceira, hotel de puta, mas no fim das contas, uma cama macia e um banheiro. No calendário de oficina na parede, uma beleza fictícia finge excitação diante de olhares famintos (ou seria beleza faminta e olhares fictícios? Não importa...). Ainda assim, inútil e vulgar, cumpre sua missão de informar datas de dois anos atrás.

“Livre” ele pensa, e novamente sorri, “Li–vre; L-I-V-R-E...” “Free at last” ele devaneia, assim, em inglês mesmo, parafraseando Martin Luther King. Que é feito do escritório e sua rotina vazia, tóxica e seus atores, preocupados em agradar a um Leviatan invisível e eternamente silencioso? Onde está a estéril gente sem profundidade e de olhos mortos, que caminha (fantasmas entre homens) e “vive” em seus ciclos mensais de suor, frustração e conta bancária tísica? E a faculdade, onde espíritos amedrontados aferram-se a pequenas verdades à giza de cruz e regurgitam gotas nem sequer digeridas de conhecimento, como quem desfia um rosário? De uns poucos, de alma livre, ele sabe que terá saudades. Estes poucos, o sal da terra, tornaram sua estada naquelas plagas suportável, por vezes agradável.

Um ressonar a seu lado pede sua atenção para o melhor fruto que aquelas terras poderiam lhe oferecer. Ele afaga o corpo elegante como de uma serpente e ternamente beija o rosto de sua companheira, e distraído, cuidadoso, escolhe o nome, o deus, que usará, o destino que trilhará na eternidade insondável de um outro dia. Não haveria necessidade de esconder o nome que desde criança disseram ser o seu (é até simpático) mas, uma vez adotado o manto de estrangeiro e de peregrino, a busca de pátria prescinde uma outra equivalente, esta, interior.

Ele se sente meio dramático, meio patético, porém quem, afinal, haveria de julgá-lo? “Temos um ao outro” considera “filme na câmera, e mais uma cidade novinha pela frente. Definitivamente, este será um bom dia!”. Mais tarde mergulharão no lago calmo de rostos cotidianos levando sua pergunta nos olhos: “Será este o terreno em que fixaremos raízes e frutificaremos?”

AO CORAÇÃO SELVAGEM NO CENTRO DA TEMPESTADE

“Meu corpo não é meu corpo. É ilusão de outro ser. Sabe a arte de esconder-se. E é de tal modo sagaz que a mim de mim ele oculta.”

C. Drummond de Andrade

À batida surda que ecoa na mata, ritmada, frenética, enlouquecida, segue o urro abafado e enraivecido da fera enraigada em meu peito que ordena, ameaça e implora por liberdade, “só um pouco de liberdade”. O convite dos tambores da selva ressoa em meus ouvidos e quero atender às demandas da besta em mim enjaulada que deseja um jorro de adrenalina para romper suas amarras e acelerar as batidas monótonas do dia-a-dia.

Tento entorpecer seus sentidos com nicotina, cafeína, pornografia e açúcares, mas ela quer chuva no rosto, relâmpagos e vento gelado, e pela manhã o sol, e de orvalho os campos cravejados. Ela quer meu coração por território, quer quebrar as grades de seda e linho que tolhem seus movimentos, quer beber água na fonte, farejar os odores escondidos na relva, campear a presa nos prados, e quando por fim exausta, quedar-se dormindo junto aos restos de sua caça.

Valha-me Deus, quase fui! Seduzido por seus encantos, entregar-me a prazeres primitivos da vida de lobisomem. Devo ignorar seu pranto, e ao menos tentar me concentrar nas notas monocórdicas do quotidiano, pois uma vez liberta a fúria, jamais será novamente contida. Coisas da vida.

A vida...ávida por vida...

FRAGMENTO BARROCO N.º 01

“Para o amor, a beleza e o prazer não há morte ou mudança, seu poder excede nossos órgãos, que não suportam a luz, sendo, eles próprios, obscuros.”

P. B. Shelley

Os dedos fluem ligeiros pelas fronteiras de seda da tua intimidade, e suavemente lêem em “braile” a beleza do teu corpo, as formas imperam ante a ausência muda da luz...és bela como nunca foste. És bela como só o são as mulheres no divino momento da cópula, a sagrada união dos corpos dos amantes inflamados em desejo. E ainda assim és mais bela, porque és única...és bela porque sempre foste a única.

Chegado o momento da lenta marcha rumo à nascente do orgasmo que em fúria transforma a doce calidez do regato da lascívia no violento torvelinho de águas barulhentas que ameaça engolir o corpo do amante e convulsivamente regurgita-o de volta à vida e aos mortais andrajos da carne , construto temporário onde luz e fogo se confundem e se consomem pois, qual lâmpada que em brilho e calor às outras excede e, efêmera, em escuridão mais cedo se recolhe, assim o vigor fenece. Teremos esquecido a chave de algum oculto reino onde a glória imorredoura da paixão seja eternizada em recantos junto a fontes? Teremos, porventura interrompido a jornada rumo a outras paisagens, outros horizontes...novos e belos horizontes?

Oh tempo, belo amigo, misterioso desconhecido, inimigo e algoz, por que não detém tua mão e saboreia este momento? Vem, pega uma taça, pára teu avanço, pára! Oh tu que passas, és tão inexorável em teu avanço... Apressa-te, então e consome-nos neste momento, e que nenhuma recordação reste para atormentar-nos quando extinta for a chama.

CHUVA SOBRE A TERRA

“Olhai os lírios no campo...”

J. Cristo

Ontem à noite choveu. Não choveu grosso, não choveu forte, simplesmente choveu. E de manhã, no ponto de ônibus, quando ia ao trabalho, as pessoas reclamavam como sempre, da vida, do custo de vida e da pornografia na tevê.

Uma senhora já de idade lembrou-se da chuva e reclamou da roupa quase seca que “dormira no varal”. Uma mocinha ruiva falou de seus tênis branquinhos (recém-lavados, frisou) que agora estavam sujos de barro. Um rapaz acrescentou que não gostava de usar blusa, mas com “este friozinho de chuva” tivera de vesti-la...Meu vizinho, coitado, que trabalha em um lava a jato ainda não se decidira, por um lado, virão mais carros, mas por outro, toda aquela água fria: “Brrrrrrrrr...” Quando o ônibus chegou todos se entreolharam e, em consenso criticaram “aquelas rodas enlameadas que emporcalhavam o asfalto”. A porta foi-se abrindo e o motorista olhava com cara feia os sapatos dos passageiros que, apesar da serragem, iriam sujar o piso.

Chegando a meu destino, ainda meio sonolento, passei pelo pequeno jardim que ladeia meu caminho matinal. E o jardineiro de sempre, iletrado e mal-pago, me olhou e esfregando as mãos sujas de terra e geladas, abriu um sorriso e disse: “ Ontem à noite choveu! Minhas plantinhas vão crescer fortes!”