quinta-feira, 23 de setembro de 2010

A LEOA E A RAPOSA

Esopo
fonte: http://great-arttattoos.blogspot.com
Todos os animais estavam se
vangloriando de suas famílias numerosas.
Somente a leoa se mantinha em silêncio.
Ela não disse nada, nem mesmo quando a
raposa toda orgulhosa, desfilou seus
filhotes diante dela.
– Olhe! Disse a raposa. Veja minha
ninhada de raposinhas vermelhas; são sete!
Diga-nos, quantos filhos vocês têm?
Ao que placidamente respondeu a leoa:
 – Um só, mas um leão...

quarta-feira, 22 de setembro de 2010

Minha tradução favorita do melhor poema de mestre Kipling

 
SE

Rudyard Kipling
Tradução de Guilherme de Almeida

"Se és capaz de manter tua calma, quando,
todo mundo ao redor já a perdeu e te culpa.
De crer em ti quando estão todos duvidando,
e para esses no entanto achar uma desculpa.

Se és capaz de esperar sem te desesperares,
ou, enganado, não mentir ao mentiroso,
Ou, sendo odiado, sempre ao ódio te esquivares,
e não parecer bom demais, nem pretensioso.

Se és capaz de pensar - sem que a isso só te atires,
de sonhar - sem fazer dos sonhos teus senhores.
Se, encontrando a Desgraça e o Triunfo, conseguires,
tratar da mesma forma a esses dois impostores.

Se és capaz de sofrer a dor de ver mudadas,
em armadilhas as verdades que disseste
E as coisas, por que deste a vida estraçalhadas,
e refazê-las com o bem pouco que te reste.

Se és capaz de arriscar numa única parada,
tudo quanto ganhaste em toda a tua vida.
E perder e, ao perder, sem nunca dizer nada,
resignado, tornar ao ponto de partida.

De forçar coração, nervos, músculos, tudo,
a dar seja o que for que neles ainda existe.
E a persistir assim quando, exausto, contudo,
resta a vontade em ti, que ainda te ordena: Persiste!

Se és capaz de, entre a plebe, não te corromperes,
e, entre Reis, não perder a naturalidade.
E de amigos, quer bons, quer maus, te defenderes,
se a todos podes ser de alguma utilidade.

Se és capaz de dar, segundo por segundo,
ao minuto fatal todo valor e brilho.
Tua é a Terra com tudo o que existe no mundo,
e - o que ainda é muito mais - és um Homem, meu filho!"

Um vício chamado CAP

Maringá, 14 de setembro de 2010


Magnífico Reitor,


Sou funcionário da Universidade Estadual de Maringá há quinze anos, doze dos quais, passados no Colégio de Aplicação Pedagógica, assim sendo, acredito ser razoável afirmar que conheço e entendo pelo menos um pouco do que estarei falando nesta carta.
Foram anos de opressão os oito primeiros que passei no CAP. Trabalhava na Secretaria Escolar do Colégio, submetido a humilhações por parte de minha chefia imediata (que já não se encontra no quadro funcional do Colégio), testemunhando e recebendo abusos. Abusos que não se limitavam à esfera profissional, mas que feriam os recônditos mais íntimos da dignidade humana. Tais abusos eram repito, perpetrados pela chefia imediata, mas com o aval da equipe de direção à época.
Recebi reprimenda formal, em primeiro lugar, por meu atendimento ser “educado demais” e depois, por seguir a orientação das chefias (imediata e geral), fui novamente repreendido por ser “mal-educado”.
Não fui o único caso de servidor assediado moralmente pelas chefias àquela época... fui o único caso que resistiu, e continuou trabalhando no CAP, acreditando no CAP. Todos os outros foram coagidos a pedirem remanejamento, remoção ou até exoneração. Nenhum destes atos era oficial, todos eram alavancados pela brutalidade, agindo extra-oficialmente, para garantir que a ditadura fosse invisível.
Professores tinham sua carreira ameaçada pela “profissional” encarregada pela supervisão pedagógica unicamente por discordarem de sua opinião, no que se configurava em uma espécie de “absolutismo” encravado no seio do serviço público.
Causa-me espanto ouvir pessoas alegarem que existem alguns pais de alunos reclamando da atual Equipe de Direção e que isso nunca aconteceu antes. Concordo com estas pessoas de que isso nunca aconteceu antes, entretanto, acrescento que isso, de fato, não acontecia porque os pais de alunos tidos como “problemáticos” eram chamado para reuniões extra-oficiais no Colégio e informados de que se não solicitassem transferência de seus filhos, “teriam problemas com o Conselho Tutelar”, numa verdadeira coação. Sob esta política terrorista, é natural que ninguém dentro da UEM jamais ouvisse falar de algum pai de aluno que reclamasse da equipe de direção destes períodos ditatoriais. Parece-nos razoável que a comunidade Universitária se assuste com as vozes que se erguem contra a atual administração... nunca antes foi possível erguer a voz e se expressar livremente, sem medo de represálias.
Curioso que a atual gestão receba a pecha de tirânica, uma vez que somente agora as oposições tenham o direito de se manifestar. Em outras administrações, o CAP era, efetivamente, uma “caixa preta”, de onde nenhuma manifestação dissonante da equipe de direção podia sair e na qual nenhuma informação podia entrar sem ser filtrada pelas oligarquias locais.
Interessante que da atual gestão se diga que levou o CAP ao caos, uma vez que é a primeira gestão que se ocupa de banir desmandos, práticas informais espúrias, práticas de assédio moral, e ingerência da res publica, que reinaram incontestes por quase 20 anos.
Causa espanto que a atual gestão seja acusada de práticas desleais, uma vez que cada uma das pessoas que a acusam encontram-se exercendo normalmente suas atividades e recebendo o mesmo tratamento que todos os outros servidores, sendo que nas administrações passadas a prática do expurgo e da coação obrigariam tais vozes discordantes a solicitarem remoção ou remanejamento do Colégio.
Surpreende-me que até o momento a luta dos servidores do CAP, assomados à Equipe de Direção, no sentido de moralizar as práticas vigentes no Colégio de Aplicação Pedagógica, cause furor, rotulada como tirânica, uma vez que este esforço vem ao encontro do preconizado no Artigo 5º da Constituição Federal, de garantir igual tratamento a todos, independente de credo, cor ou quaisquer outras especificidades pessoais. Além disso, os esforços de banir práticas escusas perpetradas sob a égide do Serviço Público atende a toda a legislação e, de maneira mais pungente, ao conceito de justeza, de sobriedade, de seriedade, imanentes ao próprio espírito das leis.
O que não me surpreende é que estes esforços meritórios serem mal-interpretados... Estes esforços coletivos, não só da atual Equipe de Direção, mas de todos nós, servidores da SETI e SEED lotados junto ao Colégio de Aplicação Pedagógica da Universidade Estadual de Maringá, no sentido de disseminar os saberes por meio do ensino, para formar cidadãos, profissionais e lideranças para a sociedade, são também preconizados pela UEM em sua missão (Res. 021/2005-COU). Nosso  compromisso com a formação de cidadãos éticos, reflexivos e autônomos; com a socialização do saber sem discriminação de qualquer natureza, são também os  princípios norteadores da UEM e, em última análise, permeia todo o fenômeno da Educação.
Talvez esta distorção grosseira de nossos esforços coletivos seja, de fato culpa única e exclusiva nossa, servidores lotados no CAP, pois permanecemos calados, sem divulgar adequadamente a magnitude deste esforço coletivo, ocupados que estamos trabalhando.

quarta-feira, 14 de julho de 2010

La Furiosa - Texto de Silvia Helena Menezes de Castro (in memoriam)

Relatos de um Reencontro

* Os nomes são reais, as situações também, apenas as datas não estão certas porque não lembro direito quando tudo começou. Mala cabeza, furiosa cabeza....


2009 mar 23 - 16:03 PM - URSO


A lembrança furiosa de uma noite improvável ao lado dele queima minha memória, acalenta meu corpo, acende minha orquídea que por tanto tempo esteve quietinha e esquecida. Suspiro.... Quase um gemido, quase um rosnado baixo . Loba, ele me faz sentir como loba...Não, como Amazona...Como louca, bruxa, maga, amante, mulher.
A primeira vez que ouvi sua voz densa, rouca, máscula, todas as fibras do meu corpo reagiram, de pronto.
Na primeira vez em que , no éter, me visitou (na véspera de uma batalha , mais uma em que estaríamos juntos), meu corpo tremia. Ventava muito, um vento frio e cortante....Eu o esperei com incenso hindu aceso, e meu corpo perfumado, macio, lânguido e pronto. Guerreiro, meu guerreiro, sua armadura negra era sólida como o tamanho imenso de seu corpo. No éter, recebo meu guerreiro vestida de veludo vermelho, pés descalços, cabelos soltos, a sacerdotisa que guarda segredos da Doce e Grande Mãe.
Vinho, tinto , doce, em taças de estanho...o fogo crepitante numa lareira de pedra, ainda o som do vento, e a armadura vai sendo tirada, expondo a pele , os pêlos, o corpo do guerreiro. De uma só vez, meu vestido cai... a grande cicatriz em forma de meia - lua , arroxeada, que recorta o lado esquerdo do meu peito parece brilhar. Um único seio, uma Amazona consciente de seu poder. Reverentemente, ele me beija com seus lábios grossos e macios, docemente me chama “sua Amazona”; me toma em seus braços fortes e eu sumo, desapareço, escondida por seu corpo muito grande e quente.
Sussurramos, gememos como o vento lá fora, urramos e uivamos juntos, pele à pele, gota a gota de um gozo mágico e profundo, antigo como o tempo. Descanso minha cabeça em seu ombro forte, ele beija minha testa, os olhos se cerram , corpos saciados, como se fosse a primeira vez. Entrelaçados, adormecemos. Pela primeira vez, homem e mulher.
Madrugada, o primeiro pássaro canta lá fora. Sei que ele tem que ir, sei que não posso segui-lo ou retê-lo; isto me custaria duas vidas inocentes....Mas a vontade de tê-lo sempre por perto é quase irresistível.
- Guerreiro, tome muito cuidado - peço, minha voz baixa , quase sussurrada.
- Não se preocupe, Amazona; sei o que estou fazendo, não será minha primeira vez - ele responde, com um olhar travesso.
- Ainda assim, não é um dragão. Lembre que é uma serpente alada, forte, má e perigosa. Temo por sua vida, guerreiro, temo pelo que pode acontecer - digo, me aproximando, tocando seu rosto com as pontas dos meus dedos.
- Não vou me esquecer, Amazona. Prometo - diz ele, beijando as pontas de meus dedos, a palma de minha mão.
Mais um beijo, e o dia surge. Ele precisa voltar, agora, antes que o sol tome seu lugar definitivo no céu, ou estaremos perdidos. Rápido, com um olhar carregado de desejo em minha direção, ele se vai, sua armadura negra começando a ficar muito visível àos primeiros raios de sol.
Me recolho, silente, e , de joelhos, athame em punho, imploro ao Deus e à Deusa que o guardem, este guerreiro que nunca perguntou nada, que apenas aceitou ajudar, de coração franco e aberto. Ofereço gotas de meu sangue à Mãe Terra, pela proteção dele. Neste instante, tenho a primeira visão, de tempos ancestrais. Como não o reconheci de imediato ? Ele , que sempre esteve ao meu lado....




2 - A PRIMEIRA VISÃO DO PASSADO

Manhã gelada nos confins do mundo, me vejo andando por sobre uma espessa camada de neve, muito branca. Grandes pinheiros resistem ao frio, emprestando a fragrância agreste de sua resina à paisagem. Fumaça sobe das chaminés, pequenas cabanas de pedra e toras, currais toscos ; entre as cabanas, varais para peixe e carne, agora vazios. Eu ? Exatamente como sou, apenas vestida de pele, botas altas de pele marrom , espessa , carregando um arco às costas, flechas , punhal e espada presos no cinto. O grande casaco, feito de pele de algum bicho marrom, talvez urso, tem um capuz, que não uso. Cabelos negros, trançados atrás com tiras finas de couro, me dirijo para minha cabana.
É um alívio saber que mais uma noite se foi, e o novo dia começa em paz. Sinto a turbulência do momento nos ossos, sabendo que podemos ser atacados a qualquer instante. Não sabemos muita coisa sobre estes guerreiros do mal, apenas que chegam á qualquer hora, silenciosos, queimam as casas, matam as mulheres mais velhas, raptam as mais novas e prendem homens e crianças , levando todos como escravos. Animais e colheitas também são levados, e tudo se transforma em cinzas antes que se perceba. Rumores de que eles, os Cavaleiros do Dragão, se encontram perto nos fazem apreensivos. Aqui, nossa vida é pacata. Aqui, nossos filhos crescem e encontramos o amor e a morte com naturalidade.
A neve ainda solta de um galho mais baixo cai sobre minha cabeça e sou jogada ao chão, por um urso grande e forte, que ri de mim..... Ele ! Querido, companheiro, brincalhão: ele. Seus olhos escuros, seu corpo forte, seus cabelos muito negros, ficando grisalhos nas têmporas. Sei o quanto ele é perigoso quando está em luta, o guerreiro sangüinário que se torna; mas aqui, em meus braços, é apenas meu companheiro, meu irmão querido, que cuida de mim e de meus filhos agora que meu marido está descansando em paz. Rimos muito, e caminhamos juntos, limpando a neve das cabeças. Chegamos, nossa mãe nos aguarda, fogo aceso e acolhedor, um cheiro bom de caldo quente no ar. As crianças dormem ainda, diz mamãe.
Tiramos em silêncio os casacos e as armas, sentamos para uma refeição quente. Nem bem começamos, ouvimos gritos, e um forte cheiro de fumaça paira no ar. -São eles ! Gritamos juntos, e não há tempo, não temos como fugir. Em minutos, uma parede é derrubada, homens vestidos de capas de pele de urso negro entram , matam nossa mãe, amarram a mim e meu amado irmão, as crianças são arrancadas da cama e maneadas também. Não há como fugir. Somos arrastados para fora, pela neve, e se não andamos, nos fustigam com grossos chicotes de couro trançado.
Matam Thaal , o ferreiro, bem em frente à nós. Covardes; Thaal defendia sua velha mãe e agora está caído na neve branca, que vai se tingindo de vermelho vivo... Chocadas e assustadas, as crianças choram.. Algumas mulheres escondem os rostos, mas não há mais o que fazer. Apenas caminhar,caminhar,caminhar..... Paramos no final do dia, com uma nevasca muito forte. Uthrus, meu irmão, consegue , após quase arrancar uma das mãos, se libertar. Alcança o pequeno e afiado punhal que carrega sempre entre as roupas, escondido, corta o máximo de cordas que pode. Liberta a mim e a meus filhos, fugimos , correndo o quanto conseguimos.
Não é o suficiente, os monstros montam seus cavalos e nos perseguem. Antes que nos recapturem, imploro a Uthrus que não nos deixe morrer escravos. Seus olhos brilham no escuro da noite, lágrimas descem... assim como sua lâmina afiada, tirando nossas vidas. Minha cabeça encontra o amparo de seu ombro forte e amigo uma última vez, meus olhos e os das crianças se fecham....Caio na neve branca, e meu irmão, flechado pelas costas, cai a meu lado.
Vemos todas as pessoas que também morreram caminhando pela neve branca, alguns chorando ... Mas como, se estão mortos ? Outros mortos, ancestrais , se juntam a nós. Encontro nossa mãe, que corre e nos abraça. Encontro meu amado marido, agora tão lindo, reencontro nosso pai, nossas crianças.. E juntos, de mãos dadas, caminhamos na direção de um amplo espaço , cheio de luz de um branco quase prateado. Acabou, o sofrimento acabou nesta encarnação.



3 - A CAÇADA

“ Soube que você está tendo problemas com insetos, insetos de escamas....(...) estes carinhas se tornam grandes e esquecem que um dia foram humanos. Não se preocupe, no inverno você vai usar um casaco do couro dele, prometo. “

Alívio e um certo medo tomam conta de mim. Um recado em um site de relacionamentos faz toda a diferença. A figura dele, quando adicionei o perfil, é diferente de todas as pessoas com quem já convivi. Muito alto, muito grande, cabelos negros, curtíssimos, piercing na orelha, cavanhaque... Confesso que pensei duas vezes, mas resolvi ouvir minha intuição que berrava dentro de mim “ - É ele ! Você não reconhece”?
Não, não o reconheço de pronto, para ser sincera, não reconheceria nem minha mãe no escuro da atual circunstância. Sei que estou sendo perseguida por um grande mal. Esta perseguição é, para encurtar a conversa, “espiritual”, digamos, e o mal se apresenta como uma serpente alada, nojenta, imensa e muito, muito forte. Negra e horrível, quer me ver destruída. Há tempos me suga energia, despertada pela inveja de um relacionamento sólido que eu mantinha a mais de cinco anos. A humana da serpente é uma criatura vil, falsa, manipuladora e com cara de porco. Sempre odiei gente com cara de porco. Ela se imiscuiu devagar entre meu namorado e eu, se fez de amiga, de boazinha, e, sem mais nem aquela, no momento em que eu mais precisava do apoio dele, ela “zuct”, deu o bote ! Ah, cadela ! Burra fui eu , que não percebi antes . Descuidada, que não prestei atenção àos sinais que a serpente estava dando, de que se levantava, de que batia suas asas nojentas.
Uma amiga fez a ponte entre o Caçador de Dragões e eu. Ele era “caso” dela, e ela contou a ele tudo, tudinho. Adicionei-o também para mensagens instantâneas e começamos a nos falar, claro, sempre tratando do assunto do bicho em questão. Ele disse que já sabia mais ou menos com quem estava lidando, e também sabia o que teria que fazer. Gostei, foi simpático, educado, extremamente agradável. Mas sou desconfiada, e não fico atrás de ninguém, até porquê nunca havia confessado meu lado bruxa. Sim, bruxa, solitária e hereditária, de uma família de stregas muito fortes. Nossa maior bênção é também nossa maior maldição : somos sobreviventes. Mulheres fortes, conscientes de seu poder. Minto que sou apenas uma feiticeirinha iniciante.... será que ele engoliu? Será que me pega no pulo?
Naquela noite, viajo até ele, no astral e fortaleço seu vínculo com Morfeu. Deixo-o apagado, e tranco sua passagem para o astral ( sim, existe um jeito; não, não vou dizer como).
Visto minha própria armadura, vermelha, pesada, antiga e áspera e vou pesquisar os hábitos da incômoda. Vejo-a, enrodilhada, imensa e negra, as asas semi-abertas, sobre a casa do ex-namorado, onde sua humana dorme, agora. Envolta em um feitiço de sombras, estou parcialmente oculta. Não trouxe minhas armas, nem o machado de guerra, nem a espada. Sou muito pequena para empunhar uma alabarda. Apenas um punhal de lâmina triangular, três fios de 21 cm, morte certa para quem ou o quê cruzasse meu caminho... mas não para uma serpente daquele tamanho. Errei, errei feio e posso pagar com minha vida por isto. Observo, imóvel e atenta; concentro-me, posso captar os pensamentos que emite. Ela está muito convencida de sua própria força, de sua sabedoria, de ser o repositório de sua maldade, e detecto que esta é sua fraqueza. Subestimar os inimigos, e superestimar a si própria, como sua humana. Talvez não seja impossível para mim acabar com a raça dela; talvez eu tenha esta força... Quem sabe não dispenso o Caçador ? Volto, rápida, ao meu próprio corpo... mantenho a armadura por via das dúvidas, e os pássaros invadem a madrugada, anunciando mais um dia.
Saio, pela manhã, faço tudo que há para ser feito. A tarde tem que ser minha, tenho que contar o que sei ao Caçador e dizer que talvez eu faça o serviço sozinha. Ligo o computador, e , pela internet, as mensagens começam, rápidas...

- Boa tarde, moça . Tudo bem contigo ?
- Boa tarde, guerreiro. Sim, apesar de não ter dormido esta noite, tudo bem...
- Não dormiu ? Nossa , eu apaguei e nem me lembrava direito onde estava , esta manhã!
- Rssrrsrsrrsrssrs, eu sei. Promete que não briga comigo?
-Prometo.
- Fui eu que fiz você apagar... eu tinha que pesquisar a bichona prá poder te contar como ela é!
- FDP! Foi você ?
-Fui, mas você prometeu não brigar... olhá lá !

Continuamos a conversa por aí, relatei tudo que havia descoberto. Ele me passou o número do seu telefone celular, e disse que eu poderia ligar se precisasse de alguma coisa, mas que ele tomaria providências. Combinamos um “passeio” para dali a três dias, quando seria noite de Hécate, noite de lua escura... Uma sexta-feira.
Juro que não pude controlar o impulso, passei a mão no meu celular e liguei. Precisava ouvir a voz dele; era uma curiosidade que ameaçava me queimar por dentro.
Ai ! Antes tivesse deixado passar, antes nunca tivesse ouvido aquela voz de barítono, rouca , profunda, e ainda assim macia, cativante. A voz de um homem controlado, mas perigoso. Um mago poderoso. Um Caçador de Dragões que ainda não conhecera derrota. Me perco naquela voz, imaginando como seria ouvi-la pertinho do ouvido, num sussurro... Arrepios ! Dizem que depois dos doze anos de idade, não se chamam mais arrepios, mas, enfim, melhor deixar prá lá.
Volto para casa, tomo um banho ainda me sentindo afetada pela voz dele. Tenho que vê-lo, tenho que tocar o dono daquela voz. Pijama, cama. E ele vem, doce e lindo, me buscar; saímos pela noite, prontos para a batalha... juntos, em nossas armaduras, vamos visitar a incômoda criatura. Em um dado momento, ele me prende em uma rede prateada de proteção, forte como aço , e, enquanto me debato, tentando me livrar e ao mesmo tempo não fazer barulho, praguejo em pensamentos. Ele está agora perigosamente perto. Sei que lançou um feitiço para não ser visto , mas temo por sua vida. Quanto mais me debato, mais a porcaria da rede se enrola.... Ele está tão próximo que já deve dar para sentir o hálito pútrido da criatura. Senhora, protegei este infame !!! Não vejo mais nada, tudo fica escuro. Agora, estou em minha cama, e ,semi-adormecida, tenho mais uma visão do passado que nos uniu




4 - A SEGUNDA VISÃO DO PASSADO

Dia claro de sol, em algum lugar do mundo. O trigo se estende, dourado e lindo, como cabelos longos , tocados suavemente pela brisa. Aqui, neste vilarejo, há muitos mercadores que chegam, trazendo de tudo. Uma festa para os olhos, para os ouvidos, pois os camponeses raramente têm oportunidade de trocar o pouco que lhes sobre da colheita por armas, ferramentas ou utensílios agrícolas.
No topo da colina, o castelo estende sua sombra majestosa sobre o rio e sobre o bosque que o envolve. Tudo é calmo, crianças brincam às margens do nosso rio limpo e tranquilo, casa de água de nossos corações.
Sou uma menina , pelos 12 anos. Moro com meus pais, e tenho verdadeira adoração pelos nossos bichos. Meu pai, apesar de seu tamanho enorme, é um homem bom e doce. Lavrador, como minha mãe, como todos nós. Planta trigo e cevada, e vivemos nossas vidas honestamente, respeitando as leis da Mãe Natureza, cultuando nossos deuses ancestrais. Homens, mulheres, crianças, vivendo em paz. Meu pai, por ser honesto e justo, é uma espécie de conselheiro do povoado, um juiz de paz que resolve questões de terras, pequenas rusgas das hortas ou disputas sem maiores efeitos em nossas vidas.
Bem no dia da feira, quando os mercadores chegam, chegam também rumores de guerra. Dizem que estão sendo alistados à força todos os homens que aguentem o peso de uma espada.
- Saxões do inferno, ouço meu pai resmungar. Coisa rara, nunca o ouvi resmungar nada....
Os dias passam, mas nossa calma começa a ser pintalgada por uma febre crescente, um medo que vai tomando ares de nuvem e se espalhando em todos os corações. Os rumores se tornam mais fortes, e cada cavaleiro que vemos chegar ao vilarejo e se dirigir ao Castelo, nos enche de mais apreensão. Num desses dias, soldados chegam , um grande grupo deles, suas lanças apontadas para o céu. Os comandantes montam belos cavalos e usam armaduras que brilham à luz do sol. Eu os vi, estava colhendo groselhas perto do rio. Tinha então, 13 anos e diziam que eu era muito bonita. Aos quinze, estaria casada com o filho de um oleiro muito amigo de meu pai, de um vilarejo próximo. Não queria pensar em nada disto, não conseguia imaginar a idéia de abandonar meu povo, meus pais, meus irmãos menores.
Os soldados acampam dentro dos muros do castelo, e fazem muito ruído. Á noite, vemos os clarões de suas fogueiras acesas, para cozinhar e espantar o frio que vem chegando. Numa manhã de geada , um grupo de soldados acompanha um comandante que enverga uma vistosa capa sobre a armadura, e entram no vilarejo marchando. Todos os moradores são chamados,e o cavaleiro começa a dizer que , por ordem do Rei, estão convocados todos os homens para compor o exército, menos os aleijados e os velhos, que ficarão para protegerem as mulheres. Choros, gritos, algumas mulheres desmaiam de pavor. Samyha, que estava esperando seu primeiro filho para dali a algumas semanas, grita e sua bolsa se rompe, adiantando o parto com o choque. Todos estão assustados, revoltados, sem entender o porque de serem convocados para uma guerra que nem sabem onde é, ou contra quem é.
O cavaleiro nos informa que depois de amanhã todos os homens partirão, e aqueles que desertarem, serão enforcados como traidores, suas terras confiscadas e famílias banidas do reino .Entramos em casa, minha mãe abraça longamente meu pai e meu irmão mais velho, que conta quinze anos agora e já é um homem forte... Amo meu pai, ele é tão bom para mim.... Me protege, me coloca no seu colo e conta histórias bonitas de fadas, de bichos, de heróis; sempre sorri e nunca nos tratou de maneira áspera, a mim e minha mãe. Meu pai me ensinou a plantar, a ver quando as sementes são boas, o tempo certo de colher; me ensinou a pescar, a conduzir o arado, a cuidar dos bichos, e, principalmente, a não julgar para não ser julgada, embora ele próprio tivesse tantas questões para justiçar. Através de seus olhos escuros e bons, eu via o mundo, e ele era meu melhor amigo, meu ídolo, o amor de minha mãe, nosso conselheiro e mentor. Não podia aceitar que ele fosse embora, eu sabia que ele não voltaria. Nem ele, nem meu irmão. Mas como impedir ?
Chega o dia da partida, os homens estão reunidos. Choramos, todos, abraçados, e sem olhar para trás, eles se vão. Eu sei que não os verei mais, meu peito dói, o coração queima... meu pai ! Um urso grande e camarada, meu amado pai.....Se foi, junto com meu irmão tão meigo, tão bonito.
Passa o tempo, a neve faz um manto branco e fofo sobre as terras. Todos quietos, tristes, mas a vida tem que seguir.
No degelo, perto do calor da primavera, em uma certa manhã, vemos um cavaleiro chegando, e nosso medo aumenta. Vem escoteiro, todo estropiado; há sangue escorrendo de seu ombro direito, o rosto muito machucado. Acha que grita, mas apenas resmunga, de tanto cansaço e dor; resmunga que cairemos, todos nós. Um ataque se aproxima, nossos homens não resistiram e muitos caíram. Pânico, gritos, tentativas de correr para dentro do castelo, para onde o homem foi. Os portões são fechados para nós !!! Não nos deixam entrar. Uma mulher muito bonita, morena e esguia, vem à janela e nos diz para termos calma, voltarmos para nossas casas, que tudo ficará bem. Ela tem olhos malévolos, uma voz ciciante de cobra. Quase no mesmo instante, flechas escurecem o céu, algumas com suas pontas incendiadas provocando incêndios no castelo, na vila e no bosque. Cilada ! Estamos todos reunidos, presa fácil para os saxões. Homens chegam , alguns empunhando machados de guerra, outros, lanças e espadas. Corremos, não sei bem para onde, e, sem saber nem quem sou, sinto mãos me agarrando. Grito, em desespero, choro, tento chutar... Ouço risadas de escárnio .Sinto um bafo fétido, sinto um cheiro fétido de corpos imundos, alguém levanta minha roupa e mãos grosseiras prendem meus pés e pulsos. Vem o primeiro homem, sinto uma dor lancinante quando ele me violenta, tento cuspir e morder aquela cara odiosa, mas ele se satisfaz como um javali no cio. Outro homem, mais outro... tantos, que parece que enfiam facas quentes no meu ventre. Já não resisto mais, penso na minha família ;
docemente , a lembrança de meu pai, urso divertido e querido, refresca minha alma, e me aquece o coração... mesmo quando uma espada me abre o ventre, depois de tantos sofrimentos. Meus olhos , abertos, não vêem mais nada. Quando acordo, vejo corpos caídos, sangue, fumaça e escombros, mas não há mais dor. E meu pai, querido, junto com minha mãe e todos que se foram, reunem-se a mim. Seguimos para uma forte luz, de um branco quase prateado.... e a dor desta encarnação termina.










5 - CRIADOR E CRIATURA

Acordo, tensa e me sentindo cansada. A noite parece que foi curta para tantas coisas que aconteceram. Abro os olhos, procuro ao meu lado na cama... doce ilusão, ele não está ali. Mas como sinto o cheiro dele ? Como sinto ainda suas mãos fortes, seus beijos narcotizantes?
Sonhei, então. Mas acho que não. Tudo muito vívido, muito claro...Bom, banho e manhã cheia, novamente faço tudo que tenho que fazer para estar livre à tarde e conseguir falar com ele... Urso sacana, invade meus sonhos assim, me deixa passada e vai trabalhar... Te pego, safado !

- Boa tarde, amazona ! Tudo bem ?
- Se levarmos em conta tudo que aconteceu a noite passada, até que tá, guerreiro.
- ...
-?
- Ah, não se faz de besta. Então agora não lembra de mais nada, engraçadão ?
- Uia, que brava que ela está. kkkkkkk . Falta de respeito!
(que raiva ! Vontade de torcer o pescoço dele quando faz isso ! Afff!)
- Tá legal, guerreiro, não lembra que fomos visitar a incômoda ? E você me prendeu numa rede esquisita, e foi sozinho perto dela ?
- Claro que sim, eu disse que você ia ficar quietinha, não disse ?
- Saco, não foi justo. Você acha que eu não ia saber o que fazer, que não tinha força prá te ajudar ? E se ela resolvesse te atacar, você estava desarmado, caramba !
- Ih , relaxa, Amazona. Já te falei que não é minha primeira, nem será a última. Fica sossegada que eu sabia exatamente o que estava fazendo.
- .... ( nossssssaaaaaaa, que vontade de esganar !!!! Até parece que é o maior caçador do mundo, humpfff !)
- Não fica brava comigo, eu tinha que te proteger. Na sexta a gente vai até ela.
- Claro que sim , claro que vou. Eu vou guiar você até onde ela está, não se esqueça disso.

Conversa vai, conversa vem, passamos a tarde trocando mensagens pela internet. Coisa boa neste mundo teclar com ele, tão perspicaz, tão culto, tão....afff, não posso dizer o que penso ? Tão cheio de tesão, um tesão refinado , que me deixa enlouquecida... a maneira como ele fala, como escreve as maiores putarias e sacanagens com doçura me deixa totalmente mole. Ai, que homem, minha Mãe !!! E a voz, de endoidecer gente sã, imagina eu que já não regulo muito bem... De fato, mas começo a pensar num troço que ele me disse, sobre não negociar com a vida. Vão se fuder, eu vou adiante.
Aí vem a primeira interferência desta maldita, desta puta arreganhada e molambenta chamada culpa. Caraca, mas e a nossa amiga que era o “caso” dele no começo da conversa? A coitada tá crente que eles ainda vão ficar juntos. Bicho, ô maldita infame que é a tal da culpa. Parece aquelas putas descabeladas dos filmes do Win Wenders, misturados a uma boa dose de Fassbinder. Saco, saco, saco.
Mando bala nas mensagens, e como sempre fiz, sou franca, pergunto. Ele me escreve “relaxa”, tenho ganas de apertar aquelas bochechas de raiva. Mas como ele é muito, imensamente maior e mais forte e mais durão que eu, melhor ficar quieta. Se ele diz prá relaxar, relaxa, Syl, quê que tem de mais ? Se ele diz que ele e a amiga não estão mais juntos, acredita, porra. Não tem nada a ver pensar que você está fazendo o mesmo que a “outra” fez. Sossega, mulher!
Pronto , sosseguei. E me entreguei, já que não tenho mesmo meias medidas, e o incerto é mais saboroso que o certo ! Vão todos pro inferno, que eu quero é ser feliz.
Saboroso é ele, a maneira como pronuncia as palavras, me deixa doida. E começo a pensar que devo ir até ele, devo viajar e ver o crime de perto. Afinal, o que são 400 Km? Seis horas de viagem para encontrar um talvez grande amor... Amor ? Que pira é essa, agora ? A gente nem se conhece, só se fala, e essa conversa de amor vem me bater na consciência.. Há, há, há...Muito interessante, amor o caralho !
Fica decidido que na sexta feira, apesar do poder da incômoda estar maior por causa do dia, vamos à luta. Eliminar e destruir a “coisa”. Pela internet ele me manda seus recados, mensagens deliciosas para ler e meditar.. E começo a perceber que há um ingrediente novo, uma certa doçura que não havia antes. Será que estou delirando ? Pior que não, a doçura está la, mesmo... nos tratamos com doçura , com carinho, como somente velhos conhecidos são capazes de entender. Bobagem, Syl, faz parte da tua carência, você tá vendo coisas, relaxa, mulher; deixa rolar prá ver no que dá, não pira, Syl.

segunda-feira, 10 de maio de 2010

"... e recomeçar com o bem pouco que te resta."

"Ooh, I know she gave me all that she wore
And now my bitter hands chafe beneath the clouds
Of what was everything.
Oh, the pictures have all been washed in black, tattooed everything..."







Eu sei que vc não me quer triste... que mesmo a minha tristeza te entristece, como tb sei que um dia vamos rir disso tudo... mas até lá... não posso negar a dor...

Te amo minha pequenininha!

Teu Urso

Let me sleep all night in your soul kitchen...