domingo, 14 de setembro de 2008

Confissões de um (quase) terrorista

No final de 1983, minha família, que passava por uma de suas cíclicas fases de crise financeira, bastante comuns naquela época de sucessivos planos econômicos, mudou-se do apartamento que ocupávamos há apenas seis meses para uma casa na Zona 04 de Maringá. Enfim voltávamos às origens, minha mãe dizia com uma convicção totalmente artificial. A casa era estranha e, juro por Deus que era uma das mais feias e pobres da vizinhança pujante, habitada por profissionais liberais e funcionários públicos.

Éramos uma pequena família constituída por minha mãe, então com seus generosos trinta e três anos, jovem e desejada, seu casal de irmãos mais novos, meus tios, ele com dezoito e ela com catorze, e eu, então beirando os nove anos. Como já disse, eram tempos difíceis. Apenas minha mãe e meu tio trabalhavam. Minha mãe, precocemente convertida em chefe de família, com o falecimento de meus avós, o que lhe acarretara assumir a tutela dos irmãos mais jovens, dividia seu tempo entre três ou quatro empregos, entre hospitais, onde era técnica de enfermagem, o serviço no instituto de previdência e alguns bicos como corretora de imóveis. Havia pouco tempo livre para ela, e quando havia, ela estava atarefada nos lides da casa. Meu tio trabalhava em uma loja de departamentos. Fora promovido recentemente ao cargo de vendedor, mas sua timidez lhe garantia uma quota menos que satisfatória de vendas, o que comprometia o rendimento no final do mês.

Minha tia e eu estudávamos, como bolsistas, em um dos colégios religiosos particulares da cidade. Uma boa escola, uma boa educação, dizia mamãe. Então, todos os dias éramos exemplares de uma espécie curiosa na escola. Éramos pobres e católicos em uma população acentuadamente classe média e protestante. Claro, na época eu não tinha a menor consciência disso, mas hoje imagino o quanto isso pesava em nossas relações sociais, ou em sua escassez. Não éramos o que podia ser classificado como “muito populares”, mas enfim, eu me destacava em algumas áreas e deixava muito a desejar em outras. Minha tia possuía seus atributos físicos que a tornavam relativamente popular entre os garotos e garotas de sua idade, de forma que este choque era sentido de maneira diferente por ela.

Para manter-me a salvo das outras crianças, meu círculo social era muito reduzido e composto de relações bastante superficiais. Por outro lado, em casa, ao contrário de me sociabilizar com as poucas crianças da vizinhança, eu me mantinha em meio aos livros da já farta biblioteca que minha mãe e meu tio faziam questão de abastecer a qualquer custo desde que notaram minha afinidade com a literatura. Verdade seja dita que a leitura sempre foi um hábito que beirava uma obsessão meticulosamente cultivada em nosso curioso núcleo familiar. Era fácil me refugiar nos livros, afinal eu era filho de uma mãe super protetora, era pobre em uma vizinhança já anteriormente citada como “pujante”, era um gordinho chato, que falava engraçado com um português impecável (subproduto das intermináveis horas de leitura), resumindo, era o protótipo do que hoje nós conhecemos como “nerd”.

Horrores de guerras, ficções históricas, ficcionistas de antecipação (eu tinha uma particular predileção por Júlio Verne), clássicos gregos, renascentistas italianos, nenhum assunto era tabu em nossa biblioteca, nada era proibido. Romances de espionagem, poesia, tanto boa quanto ruim, era consumida com voracidade naquela casa em que nem sempre se tinha energia elétrica e as compras de mantimentos para o mês duravam, em geral, duas a três semanas. Mas vivíamos felizes. Minha infância era muito feliz.

Minhas primeiras grandes oportunidades para me aventurar no mundo real vieram com o dia em que eu não tinha mais livros para ler em casa. Digamos que minha mãe foi forçada a relegar um pouco a segundo plano sua superproteção sobre mim, para permitir que eu freqüentasse a biblioteca municipal de minha cidade. De alguma maneira, dona Cleide achava que se a minha curiosidade cessasse de ser alimentada pelos livros, acabaria sendo tragada para o abismo do crime. Risos. Mães são todas, todas iguais.

Assim sendo, minhas aventuras semanais na biblioteca municipal me descortinaram um mundo amplo, virtualmente inesgotável. E meus dias eram agitados, em companhia de Ivan, o terrível, Catarina de Médicis, Nicolau Maquiavel, Arthur Clarke, Asimov, Papus, Trotsky, Malatesta, Madame Blavatsky, H. P. Lovecraft, Aristóteles, Herman Melville, entre outros. Boas companhias, que me falavam sempre sobre o modo como concebiam o mundo e tudo que havia nele.

Ao contrário do que se poderia supor ou melhor, do que minha mãe esperava, o desempenho na escola estava sempre beirando o pífio nas disciplinas que não me interessavam. Diga com honestidade, você preferiria acompanhar Hemingway em uma estadia em Paris ou ficar decorando os rios da Bacia do Amazonas? Melhor: você passaria as suas tardes acompanhando o caos que Heitor lançou sobre Agamenon e os aqueus junto aos navios enquanto Aquiles permanecia em sua tenda, irritado por ter sido privado de sua presa de guerra ou... ficaria resumindo A cabana do pai Tomás para uma verificação de leitura na semana seguinte? Juro que até hoje não faço a menor idéia de como era a moradia do simpático ancião.

Era inconcebível para minha mãe que as minhas notas fossem menos que excelentes. E então o imponderável aconteceu; dando ouvidos a uma psicóloga à qual me levara, sob recomendação da escola, minha mãe, (veja você, minha própria mãe!!!) tentou me privar de minhas leituras. Não de todas, obviamente, apenas das que fossem consideradas adultas demais para mim. Como se, caso fossem realmente prejudiciais para mim, o estrago já não estivesse feito. Desta forma, meu privilégio de biblioteca foi, senão suspenso, pelo menos reduzido drasticamente e monitorado com muita atenção. Livros, discos e fitas infanto-juvenis surgiram “ex nihil” e, até onde sei, morreram virgens de uso.

Foi nessa época que estreei em minha vida dupla. As notas, as mantinha cuidadosamente acima da média, eu havia aprendido a lição. Quanto à Biblioteca Municipal, as visitas ostensivas de sábado à tarde, rigorosamente monitoradas eram suplementadas por idas clandestinas praticamente diárias. Risos. Claro que, até hoje, se você perguntar a minha mãe porque eu ficava tanto tempo ausente de casa, todas as tardes, ela vai dizer que eu havia ido à natação, depois esticando em casa de algum amigo. Pobres mães, elas foram feitas para serem protegidas de nossas condutas por piedosas mentiras. Mães são criaturas delicadas, sua compleição frágil não suportaria nossas verdades, por isso precisamos sempre tecer um delicado casulo de inverdades, fantasias e omissões habilidosamente elaborado para que sua felicidade e sua fé na espécie humana permaneçam intactos.

Meu grande aliado e benfeitor, nesta época era meu tio, a esta altura, um respeitável acadêmico do curso de história da universidade estadual de minha cidade. Isso considerando que existia, na época, esta coisa chamada acadêmico respeitável de História. Antes que você me queira ver linchado, eu explico, na época, o país era ainda “noveau arrivé” nesta coisa apelidada de “democracia”, mas a mentalidade de minha cidade ainda estava impregnada de ranços do período ditatorial e o curso de história era reputado como um antro de comunistas, o que em nossa cidade equivalia dizer agitadores, maconheiros, libertinos e algo de vagamente satanista. Risos. Ignorando as recomendações e ameaças de minha mãe, sempre movida pelo mais sincero zelo por seu filho, ele contrabandeava para minha bolsa Vico, Montesquieu, Bobbio, Foucault, Hilário Franco Jr., Nietzsche, Descartes, Morus, Erasmo de Rotterdan, sem falar dos incendiários... Engels, Marx, e por aí vai. Risos.

O grande problema é que nesta época eu já estava em uma fase hormonalmente homicida, conhecida como adolescência. Sentia como se a vida inteira eu houvesse coletado ferramentas, instruções de montagem e uma quantidade enorme de Plutônio e que, finalmente meus hormônios houvessem dado o sinal verde para que eu explodisse um hemisfério do planeta ou morresse tentando. Sabe como funciona isso, não? É Nietzsche que se conecta ali com Foucault, que se liga a Malatesta,que nega Homero, que é refletido por Aristóteles que aciona Santo Agostinho, que provoca Mostesquieu, que assegura Descartes, e vai acelerando e liberando energia com Russel e jorra tudo, já atingindo massa crítica em Marx e sendo absorvido pela testosterona toda presente na corrente sanguínea.

O resultado disso tudo é tão difícil para explicar como para entender, de forma que teremos que deixar esta história para uma outra oportunidade, entretanto uma coisa posso afirmar, se dona Cleide sequer sonhasse que o que, em primeiro momento, pareceu uma boa forma de controle comportamental, acabaria se desaguando em uma espécie estranha de delinqüência juvenil, talvez ela tivesse preferido manter-me semi-letrado e bonzinho.