terça-feira, 10 de maio de 2011

IV Drakkar Noir – Afinidades perigosas

IV – Afinidades perigosas

 chrystian r. silva




“(Há tempo) tempo de matar, e tempo de curar; tempo de derribar, e tempo de edificar;”
Eclesiastes 3:3

Então este é o apartamento de um assassino? Três mortes e uma pia abarrotada de louça nas costas. Olho à minha volta e vejo ruínas de uma outra pessoa, uma outra vida. O apartamento é pequeno, o ar quase irrespirável. Abro as janelas e deixo o ar úmido tocar as cortinas empoeiradas e tomar o ambiente. Ela, Carla, me observa. Guarda um silêncio quase respeitoso. Para ela, é quase como se eu estivesse visitando um túmulo. Quem sabe de fato não estou?
Estas não são mais minhas coisas. Só os livros são meus, amontoados em pilhas sobre cada espaço fora das rotas entre os eletrodomésticos mais utilizados, aqueles sobre os quais recai uma camada menos espessa de poeira. Alguém me disse que o maior componente da poeira em nossa casa é pele morta. Então talvez um pouco daquela outra esteja me espreitando por aqui. Até os CDs pertencem a alguma outra pessoa. Os vinis? Talvez alguns deles ainda sejam meus. O tabuleiro, o velho, enorme e pesado tabuleiro de xadrez, com sua madeira antiga e confiável, ainda é meu. Ele se espalha, ancião agasalhado por uma pesada manta de poeira. A secretária pisca, lotada. Aperto seus botões e ela começa a me contar meus segredos.
*beep* Oi, Chryz, eu estou muito sozinha. Me liga.
*beep* Chryz, você está aí? Me liga!
*beep* Chryz, quando você puder, me liga.
Bel, doce Bel. Vou à estante e sirvo-me de um duplo. Carla me estica um copo empoeirado. Eu o limpo com a camiseta e sirvo-lhe dois terços. Ela faz “tim-tim”, às vezes eu me esqueço com quem eu estou lidando... pffff. Nos sentamos. Bebo um grande gole. Beber pela manhã... bah!
*beep* Sr. Chrystian, aqui é da Ipanema cobranças. O senhor pode nos retornar? O telefone é 4134-09162. Obrigada!
*beep* Chryz, você está bem? Faz uma semana que te ligo e não te encontro... me liga!
*beep* Sr. Chrystian, estamos informando que o seu cartão Visa estará sendo bloqueado. Evite o cancelamento saldando sua fatura na agência bancária mais próxima.
*beep* - Silêncio.
Meu estômago se contrai. Encho o copo, tomo mais um gole e tento ignorar.
*beep* Roni, liguei no teu trabalho, me falaram que você está de licença... três meses, hein, cachorrão sem vergonha! Te cuida, filho! Não vai festar demais. Você tem que arranjar uma namorada. Vê se não vai festar demais!
- Roni?!? Ela pergunta, divertida.
- Mãe, né?.
- Mas Roni???
Respondo alguma coisa e perco duas mensagens. Alguma coisa sobre um concurso idiota para o qual nem me inscrevi. Revistas cretinas!
*beep* - Silêncio novamente.
*beep* Aê, Ursão!!! Feliz aniversário, bro!!! Não precisa atender, dá um trato no couro!!! Cafajestes, cara, cafajestes!!!
- Ursão?!?
- Apelido de quartel. – Emendo seco. – nosso grupo era: “Os Cafajestes”.
- Hmm... sei...
*beep* Chryz, feliz aniversário, me liga... – Bel.
*beep* - Silêncio.
*beep* Olha, meu filho, quando a piranhada te der tempo, liga para a sua mãe, lembra dela? – Risos. - Feliz Aniversário!!! Trina e um, hein? Quem diria!!! – mais risos.
*beep* - Silêncio.
*beep* - Chryz, eu estou preocupada! Fui aí, interfonei e ninguém atendeu. Chryz, esquece aquela vagabunda, ela não te merece!!! Me liga. Esteja onde estiver, espero que esteja bem. Feliz aniversário... espero.
*beep* - Mais silêncio.
*beep* - Chrys, a gente tirou a sorte aqui no acervo para ver quem te ligava... eu perdi! - Risos. – Feliz aniversário, cara!
- Eu odeio comediantes! – comento.
- Nossa! Como você é rabugento!
*beep* - Silêncio. Uma respiração funda. – Oi... apesar de tudo, eu gosto muito de você. Feliz aniversário!!! É hoje, né? – Riso gentil.
Uma onda de calor me invade o rosto. Arremesso o copo no vazio, derrubando a secretária. Seu próprio peso faz o resto. A fita voa alguns metros, a carcaça se quebra. Teclas se espalham. Algumas peças de xadrez rolam preguiçosas pelo chão.
- Era ela... – Como Carla é perspicaz!
- É.
Tomo um gole direto do gargalo. Algum idiota quebrou meu copo. Bebo mais um, dura um quarto da garrafa, tampo e equilibro sobre uma pilha de livros. Meu “Arquipélago Gulag” vai ficar com a capa manchada de whiskey. Foda-se.
- Vem, vamos descansar! – ela estende a mão docemente. – Tem cama neste moquifo?
- Ali. - aponto o quarto.
Antes de dormir, um banho. Estou exausto, apático. Ela me banha e me seca como a uma criança. Suavidade... suavidade, baby. Seja gentil comigo. Carla encontra lençóis limpos de algodão para a cama. Antes de dormirmos, ela me cavalga como uma dama. Delicadeza e carinho. Gozamos abraçadinhos, depois sorri e beija-me a ponta do nariz.
- Feliz aniversário atrasado!!! – Ela veste o melhor dos seus sorrisos.
- Obrigado. – Respondo, sincero.
Dormimos abraçados.
Acordo. Minha cama, os cheiros da minha casa. Meus lençóis, minha fome, meus cigarros no criado junto à cabeceira. Tudo igual. Tudo ali. Aos poucos as peças vão se juntando e formando o conjunto que estou acostumado a reconhecer como minha vida. Meu cotidiano. Minhas estantes ainda estão abarrotadas e precisando de uma espanada. Os livros ainda estão precisando ser restaurados ou catalogados e, alguns até, lidos. O pó ainda reina. No retrato, minha irmã, Alessandra, exibe seu sorriso franco. Minha mãe olha com cara de desconfiada, meu irmão mais novo faz sinais de rapper com as mãos. Eu, com uma de minhas camisetas de banda e bandana da Harley-Davidson na cabeça. Aquela que Alessandra diz me fazer parecer um “maloqueiro”. Hehehe. Você tinha razão, Dorothy, não há lugar como o lar. Minha cama, meu quarto, minha casa... Meu Deus! Não foi sonho! As imagens dos últimos dias invadem a minha mente, lembrando-me que, por mais que pareça, as coisas nunca mais serão as mesmas. Não importa o motivo, eu exterminei três vidas humanas! Por quê três? É... o sujeitinho ridículo do banheiro não fui eu quem “fez”. Foi o Raul. Claro que eu comecei, mas não... só dois. Os dois garotos na saída do Drakkar. Porquê Drakkar? Um dia tenho de perguntar ao Raul. Deve ser alguma citação obscura ou alguma bobagem. Dois garotos! Duas crianças. Talvez não tivessem idade nem para se alistarem. Nem a auto-preservação serve de justificativa. Eu exterminei três vidas humanas. Três não, duas... duas e não se fala mais nisso. Duas! Não sou um soldado, esta não é uma guerra. Não estou em Stalingrado. Alguma coisa escura e rastejante lá no fundo me diz, sibilante, que se eu quiser Ter uma vida normal de novo, a contagem de corpos vai aumentar. Muito. Com sorte, antes de eu voltar para as minhas estantes, vou ter de despachar mais alguns. Sem sorte, o corpo será o meu. Não, viagem... ninguém mais vai morrer. Carla e eu vamos para o Sul, a gente fica uns tempos por lá e quando a gente voltar eu compro uma moto e aprendo a pilotar. Não nessa ordem, claro.
Onde se enfiou Carla? Levanto e me dirijo ao banheiro. Na sala a encontro esparramada no sofá, só de calcinha lendo um de meus livros de anotações... poesia. Poesia ruim. Ela está de óculos na ponta do nariz. O cabelo cobreado emoldura o rosto concentrado. Eu diria que é uma cena que vale à pena ser registrada. Sem fazer barulho, estico a mão e pego minha K-1000. Olho o registro. Sem problema, tenho filme. Silenciosamente traciono o filme e regulo. Levo o visor ao rosto, foco, enquadro e...
*Clack!*
- Chato!. – Exclama.
Ótimo! Agora cara de brava.
*Clack!*
- Ei! Você acha que é o Sebastião Salgado?
- Não, o J. R. ...
*Clack!*
- ... Duran. – Cobrindo-se com o livro.
*Clack!*
- O J. R. Duran não fica de pau duro durante as sessões! – Ela aponta para minha pelve. Cara divertida.
*Clack!*
- Isso se chama ereção matinal, conhece? – Sorriso safado.
*Clack!*
- Claro! Já acordei com muitas... ao meu lado!
Ela ri divinamente. Levanta-se e vem para cima de mim. Toma-me a câmera da mão e começa a tracionar. Regula muito rápido e minha ereção recebe os primeiros retratos de sua vida. Eu, claro, tento escondê-lo da maníaca da câmera fotográfica.
*Clack!*
rrrr... rrr...
*Clack!*
rrrr... rrr...
*Clack!*
- Ei! Você é rápida nisso, hein?
- Eu fiz um curso quando estava chegando ao fim como modelo... a idéia era encontrar uma nova profissão, sabe?
- Curso, é? Foi caro? Quando isso tudo acabar talvez eu o faça.
- Acho que não, pagamento em espécie. Você não faz o tipo do professor. Ou será que faz? – Ela ri.
- Nem!
Deixo a câmera em cima do tabuleiro e dirijo-me ao banheiro. Ela vem atrás.
- Você joga xadrez?
- Jogo.
- Me ensina?
Passo pela cozinha. A mesa está posta, bule fumegando, cesto com pães... que bonito!
- Uma hora dessas.
- Quando?
O banheiro está limpo! Alguém o lavou! Está até cheirando bem. Com sorte nem tem mais baratas alojadas dentro da banheira.
- Na viagem a gente vai ter muito tempo. Eu levo um manual e um tabuleiro.
- Mesmo?
- Mesmo.
- Eu vou me lembrar. Não sou feito aquelas retardadas que você deve pegar. – Põe o dedo no canto da boca e faz voz de patricinha. – Como é que joga? É igual o jogo de damas?
- Eu não pego retardadas. – Meu Deus! A primeira urina do dia... como é bom isso! É como ganhar na loteria.
- Aposto que pega. E daquelas que nem sabem trepar. Aposto que adora virgenzinhas cheirando a leite ninho.
- Nem. Detesto. – válvula de descarga funcionando bem. A menina é um esquadrão “faz-tudo”!
- Então?
- Então o quê?
- Que tipo você pega?
- O tipo que me dá dor de cabeça depois... – “como você”, eu concluiria, se tivesse coragem. Deus permita que eu não me apaixone desta vez... mas está meio difícil!
- Ah, te amarra numa malvada, né?
- É. Chega! – O papo está indo para assuntos incômodos.
- Tá, desculpe. – Ela é boa em pegar deixas!
- Sem crise.
Vou lavar as mãos ela está sentada na pia, puxa-me e me enlaça com braços e pernas e beija gostoso. Nos amamos sobre a pia. Como dois tarados. Desenfreadamente. Nossos corpos, muito quentes, contrastando com o friozinho desta manhã. A pele dela arrepiada, as auréolas enrugadas e os mamilos em contato com meu peito. O choque de minha pelve com seu púbis quase produz faíscas. A cada golpe, ela vibra como um diapasão. Sua respiração, entrecortada e gritos anuncia a chegada de um Orgasmozilla. Sim! Ele a abocanha, ela grita! Grita alto e mais alto, ela se debate em fúria. Minha costas recebem a marca de suas unhas, ainda que curtas. Molhada, molhada e quente, pede mais. A cada arremetida ela geme gutural. Como é bom! É bom estar vivo e estar com esta mulher. Talvez não nesta ordem. Ela me segura o rosto entre as mãos e usa este apoio para trazer seus pés junto ao meu pescoço. Flexível... deliciosa. Nosso ritmo aumenta. Sinto que ela se aproxima do seu segundo clímax. Multi-orgástica? É bom demais para ser verdade! Ela pede para que eu a acompanhe neste próximo. Como se eu pudesse evitar, ela me deixa completamente fora de controle. Gozamos. Deus do Céu, como gozamos! Alguém geme alto. Voz de homem. Demoro a perceber que sou eu. Ela, de olhos fechados sorri, gargalha e me chama de seu novilho. Adoro quando ela fala assim!!! Ela grita que adora cavalgar seu novilho. Nos entregamos, ofegantes, nos braços um do outro. Ela sorri,  olhando para mim, beija-me molhado e gostoso.
- Gozou gostoso, foi?
- Ahãnnnn... – ela me enlaça o rosto e beija estalado. Está radiante, seus olhos brilham.
- Mmmmm... sabe?
- O quê?
- Você beija gostoso.
- É? Obrigado.
- Tonto! – Me dá um tapa na testa. – a gente não agradece elogios, a gente abaixa a cabeça e finge que não ouviu!
- Tá bom, sinhá, não bate no nêgo não! – Fazendo voz de escravo velho de novela das seis.
- Palhaço! Vamos tomar café! – Carla se joga da pia, sustento seu peso e a levo em meu colo. - Olha lá o café que te preparei! Aposto que nenhuma das suas piranhas te preparou um café destes!
- Ei! Você andou falando com a minha mãe?
- E precisa? É só olhar na tua cara e saber que você é um puteiro desgraçado! E além do mais, ninguém para conhecer a gente melhor que a mãe da gente.
- Pfff...
- E então, não é lindo?
- É! Onde você arranjou tudo isso? Eu não me lembro de ter geléia, ou croissant, ou qualquer destas coisas na despensa ou na geladeira.
- Pois é, você vive do quê? De luz solar? Fotossintetiza, é?
- Onde você arranjou estas coisas? – Repito meio alterado.
- Êêê... botei uma camiseta tua que me dá pelo joelho, parece uma batina, e fui na mercearia lá embaixo.
- Carla, não dá bobeira, já pensou se alguém te vê?
- Foi rápido e ninguém me viu!
- Mas e se visse? Quer virar ração de cachorro? – Estou muito alterado.
- Não grita comigo. Eu fui legal com você, dá para ser legal comigo e agradecer? – Começa a chorar. Afago seus cachos avermelhados e falo com voz mansa.
- Ô, bebê... desculpa. Eu me preocupo com você. Olha, não faz mais isso. Eu vou sair hoje à tarde para comprar as passagens e você vai ficar aí. Não saia, não atenda o telefone e, se quiser falar comigo, ligue no celular que o Raul deu. Eu anoto o número. Entendeu?
Ela acena que sim com a cabeça, entre soluços.
- Você vai ficar bem?
- Só se você trouxer alguma coisa bem gostosa para a gente comer! – Ela levanta a cabeça sorridente.
- Era fingimento?
- Claro! – Com um sorriso de orelha a orelha. – e olha que você ainda não viu quando eu finjo um orgasmo... ou será que viu? Hehehehe...
- Filha da puta!
- Não, com você foram todos reais... até agora. Mas continue praticando, eu enjôo rápido e aí, ó... – Top! Top! Top! - Hehehehe...
- Filha da puta!
Ela me estala um beijo e começa a se servir do café da manha. Realmente, está uma delícia.
- Escuta...
- Quê?
- Aquelas poesias... você pretende publicar?
- Não.
- Que bom!
- Quê?!? Virou crítica literária agora???
- Não, só são ruins...
- Isso eu sei.
- Então...
- Mas até você diz isso?
- Alguém mais diz? – Risos.
- Não, mas...
- Tem certeza? Olha, Deus tá vendo! – Ela atalha.
- Não, mas... quer dizer, é o que eu acho... são ruins mesmo?
- Não... são só, sei lá, estranhas...
- É, eu sei.
- Mas sei lá, talvez alguma seita de góticos goste! – Risos.
- Vaca!
- Olha, mais respeito! Senhora vaca para você... ou talvez, Sua Alteza Digitígrada!
Rimos muito. Pela primeira vez desde que tudo isso começou eu consigo relaxar. Ela me faz bem, é divertida, sem crise e inteligente. Comemos o resto do café da manhã sem pressa. Ela, nem por um momento lembra de se servir de alguma dose. Eu, Nem por um momento me lembro de me sentir culpado pelo que aconteceu àqueles pirralhos anteontem à noite ou foi ontem de madrugada?
Assistimos os desenhos da TV. Nos amassamos mais um pouco. Esgotamos o repertório de piadas um do outro. Perto das dez, tomo um banho e me preparo para sair. Ela se preocupa sobre o que eu vou fazer. Lembro-a de que vou providenciar as passagens. Peço a ela para assistir aos jornais locais e programas policiais e me ligar se houver alguma menção ao que fizemos. Ela acha que Raul deu um jeito em tudo para não entrar polícia no meio. Pouco provável, eu digo, mas se for assim, tanto melhor. Ela comenta que é uma pena alguém ter quebrado a secretária eletrônica, senão daria para eu entrar em contato com o apartamento também. Respondo que assim é melhor, que vou precisar estar focado hoje, que se estiverem à nossa procura, hoje é crucial.
Antes de sair do apartamento, recomenda-me todos os cuidados possíveis e alguns que ela inventa na hora. Pego o elevador.
A Valquíria, do 803... hmmm... começamos bem! Dou meu melhor sorriso e digo que senti sua falta. Ela responde laconicamente. Há algo errado? Digo que estava viajando e que não deu para manter contato, falo que quando ela tiver um tempo, eu bem que poderia dar um pulo lá em cima para mostrar um álbum do Joy Division que encontrei. Ela concorda mas acrescenta, displicente que é para eu levar minha namorada, porque ela a achou muito legal. As últimas palavras foram ditas em um tom glacial. Puta!!! Ah, é...? Sorrio sem graça, como vocês se conheceram? Ahn... você a levou à mercearia... ahn... você logo reconheceu a camiseta que me deu no Natal? Ah, ela pegou na gaveta... não foi por mal... Ofereço meu sorriso mais amarelo. Vadia!!! Claro! Eu a levo assim que voltarmos de uma viagem que precisamos fazer. De novo, ela pergunta. É, aproveitar que estou de licença. Nossa, você nunca quis me levar nem à casa da sua mãe, ela comenta. Mas nem ela, me defendo. Mas como, se ela conhece até seus irmãos, ela retruca. Piranha!!! Não, sabe ela...
*Plim*
O elevador se abre no terceiro e sobem duas senhoras gordas, as irmãs do 305, terríveis caluniadoras! Droga! Olho para Val. Ela olha para o infinito. Sou menos que algum grão poeira no ombro de seu tailleur vermelho de comissária de bordo. Vagabunda!!! Já chegou destruindo meus casos!!! Vamos em silêncio até ao térreo. Na calçada, seguro-a pelo braço e peço para conversarmos melhor outra hora. Carla sai à janela e grita como louca. Solta algo. Saímos do caminho do bólido que quase se arrebenta no chão. É minha carteira. Maldita!!! Val me dá um tchauzinho já a alguns metros de distância. Certamente essa é a única coisa que ela vai me dar de hoje em diante. Antes de chegar à esquina, ela se vira e arremata o assunto, dizendo para eu ter cuidado porque na próxima vez minha namorada pode mandar um tijolo pela janela. O fruteiro esconde o riso, Val dobra a esquina. Foi-se. Droga, droga, droga!!!
Desço a rua até o ponto de ônibus, duas conexões e chego ao centro velho, onde posso pegar um mototáxi e ir para o lugar onde realmente preciso chegar. É paranóia, mas nunca se sabe... O motoboy me deixa em uma grande galeria dedicada ao rock. Minhas roupas não vão chamar a atenção por aqui. Alguns telefonemas e encomendo duas passagens de ônibus para o Centro-Oeste. Você não achou que eu ia comprar passagens de avião, né? Faça o check in e boa viagem... ninguém vai saber que você embarcou nem para onde você vai! Nem eu sou tão amador! Além disso, para que servem os serviços de disk-passagem? Se até Raul e Carla estão paranóicos, todo o cuidado é pouco.
Sento-me em uma lanchonete e faço o pedido a uma atendente vestida em uniforme azul, ela se destaca como um búfalo em um viveiro de coelhos. Neste ambiente é fácil identificar quem pertence a este lugar e quem está aqui por outros motivos. É melhor esperar a chegada de minhas passagens com o estômago cheio. Fast-food... dizem que tem este nome porque é a maneira mais rápida de adquirir uma doença arterial. De toda maneira, é uma delícia.
Uma multiplicidade de pessoas estranhas. Meu tipo de pessoas. Piercings em lugares inimagináveis. Tatuagens, camisetas de bandas. Adolescentes de vinte e poucos, trintões, quarentões todos devidamente identificados conforme suas preferências musicais. Um cinqüentão passa por mim vestindo uma camiseta do Yes... curioso. Um senhor na casa dos quarenta e poucos, extremamente deslocado anda de mãos dadas com uma adolescente... obviamente fazendo compras com a filha. Eles entram em uma loja. Alguns minutos depois, saem carregados de sacolas pretas, ela o abraça e dá um longo beijo apaixonado... é... acho que não é a filha. Uma loura siliconada com uma camiseta do Mötley Crue me encara, o namorado dela com pinta de Hell Angel, provavelmente um dentista ou advogado em hora de folga, me olha feio. Eu disfarço. Uma manada de adolescentes barulhentos passa. Eles se empurram e acotovelam em frente a um estúdio de tatuagem. Parece-me que um deles está com uma autorização do pai para fazer sua primeira tatuagem.
Desta maneira, quarenta minutos da minha vida se vão sem deixar vestígios e estou já cansado de ficar sentado, mas ainda assim, o lugar da entrega é aqui, não posso arredar pé. Meio dia e meia. Por quê não deixei isso para a tarde? Tinha de pegar justo a hora de almoço? A moça da lanchonete vem limpar minha mesa e me pergunta se quero mais alguma coisa. Claro que quero, meu anjo, me traz uma enorme caneca de café. Ah, só tem expresso em xícaras do tamanho de medidor de xarope? Então faça assim, prepare quatro ou cinco xícaras, despeje em uma caneca e pode me trazer com adoçante. Ela sorri incrédula, moça simpática. Acrescento que é sério e que quero algumas sfihas abertas de carne. Ela pergunta se eu estou brincando, sorrio e digo que é uma delícia. Ela me olha como se eu fosse um alienígena. Pronto, ganhei mais uma fã! Nada mais interessante que um homem tatuado, alto, de cavanhaque, com três mortes nas costas e que come sfihas de carne com café.
Treze e quarenta e cinco. Um homem se destaca na multidão. Ele está vestido discretamente mas, ainda assim, distoa da cor local, não que aqui só haja head bangers, no entanto, usar camisa polo salmão e mocassins por aqui é como instalar um neon no meio de um cemitério. Por quê você acha que eu escolhi este lugar para a entrega? O ditado “só os paranóicos sobrevivem” parece bastante apropriado à situação. Jornal na mão, parece mais um pai de adolescente, mas ele está demonstrando interesse demais nos CDs errados para sua idade aparente. Ele me observa discretamente. Espero não haver demonstrado que o percebi. Bem, vejamos... segundo Raul, seja quem for, por algum motivo que me é desconhecido, querem Carla. Certo. Ele pode ser um matador, mas não vai me matar aqui e não antes de saber onde ela está. Isso limita as opções dele. Se ele não nos seguiu ontem até meu apartamento, deve Ter, de alguma forma, descoberto que encomendei passagens... talvez tenham mandado ele para verificar o pedido... se assim for, ele está sozinho, mas não por muito tempo. Isso leva ao fato de que têm, pelo menos, uma boa descrição minha. Talvez, a esta altura já tenham uma foto. Sim, olha lá! Ele está manuseando seu celular. Sempre achei que câmeras embutidas em celulares eram um perigo. Okay... pensa, pensa. Levanto-me e vou pagar a conta. Digo que vou dar uma volta, mas se chegar um entregador de uma agência de passagens, já estarei de volta. Ela me olha desconfiada. Drogas, deve estar pensando. Droga, eu penso, tudo bem, mau movimento, mas agora é resolver o problema principal. Calar o sujeito da camisa polo antes de isto aqui estar fervilhando de trintões de mocassim.
Vou a uma lojinha logo em frente à lanchonete: “Dragon’s Lair”. Brincos, colares e pulseiras com spikes dividem espaço com camisetas. Pego uma do Misfits, preta, como todas as outras. Pergunto ao balconista, um cara barbudo, cabeludo e muito comunicativo, se ele tem outros tipos de adornos. Isso deve ter uma certa procura porque ele imediatamente tira uma bandeja cheia de punhais trabalhados, pequenas cruzes com bordas afiadas, dragões com lâminas saindo da boca e dois ou três modelos de soco inglês trabalhados para darem a impressão de que seu usuário está usando diversos anéis. Escolho um que se ajusta um pouco melhor à minha mão e pego ainda uns anéis e colares para disfarçar. Tiro meu colar de prata de Bali, coloco-o no bolso e coloco um dos recém comprados, uma cruz celta, no pescoço. O sósia do Max Cavalera sorri e comenta:
- Ficou maneiro, cara.
Coloco o soco inglês no bolso, despeço-me e me viro para sair o camisa polo está na porta da loja. O cara não perde tempo. Eu passo empurrando-o com o ombro.
- Olha a frente, ô mané! – ele fica puto e, instintivamente leva a mão para trás do corpo.
Ah, é aí que você guarda teu berro?. Bom saber... Não sei direito o que eu estou fazendo, mas acho que está indo bem. Volto à lanchonete. A mocinha logo diz.
- Ah, Olha ele aí! – e me aponta para um motoboy uniformizado. Ele se aproxima sorrindo e pergunta:
- O senhor pediu passagens para Ponta Porã pela Guarnieri? – Será que o camisa pólo ouviu?
- É. – estendo três de cinqüenta. – Guarda o troco. –
Ele sorri como quem nunca recebeu uma gorjeta, agradece, me faz assinar um recibo e some rapidinho antes que eu mude de idéia. Garoto esperto! O cara! Olho de lado, o “Camisa Polo” está falando ao telefone. Aproveito a deixa e vou saindo apressado. Ele guarda o telefone e quase corre atrás de mim. Vai ter de me abordar para saber onde está Carla. Vamos ver o quanto você conhece este lugar. Eu sou daqui, cara-pálida! Começamos a passear...
Mais de uma hora depois, já passamos várias vezes por cada corredor de cada pavimento. Os seguranças olham despreocupados... se ao menos eu pudesse pedir ajuda! Sento um pouco para tomar um suco. ele se mantém longe. O “camisa polo” não está brincando. Ele é bem diferente dos outros que já encontrei. Ele me olha sério e frio. Segura mais apertado seu jornal e tira algo cilíndrico e prateado do bolso. Eu me sobressalto. Aquilo não é um cantil de whiskey! Ele rosqueia o cilindro em algo dentro da dobra do jornal... Silenciador, merda! Merda!!! Instintivamente eu me levanto e começo a andar a esmo na direção oposta a ele. Ele corta caminho pela multidão de preto. Empurra alguns. Eu me movo com a mais rápida naturalidade da minha vida. Preciso ganhar tempo enquanto penso.
Passo por um bando de góticos de shopping. A menina de olhos azuis tem um piercing no lábio com uma bolinha em forma de caveira. Os olhos da caveira brilham azuis como os olhos da dona. O rapaz ao lado dela usa sombra nos olhos e parece estar em transe profundo. Eu dobro à esquerda, rumo ao vão central e seu domo de acrílico azul. Olho para trás... cinco metros ou menos. Ele se move sem pressa. Parece indiferente. Uma nissei gordinha de cabelos cor de rosa sorri para a amiga. Há uma jóia em seus dentes muito brancos. Duas lojas depois um adolescente reclama com o amigo que a namorada não vai voltar. O outro diz para ele esquecer aquela vagabunda. O primeiro começa a chorar. Pensa, cara, pensa! Cheiro de material de limpeza e incenso. Uma loja de artigos místicos assustadores me saúda com um crânio sorridente em resina. Um corvo de brinquedo incrivelmente realista crocita “Nevermore! Nevermore!” Onde eles arranjam estes brinquedos lindos?!? Dobro à direita na esquina. Uma pequena multidão se acotovela em frente a um estúdio de tatuador. Ao que parece, há uma estrela de TV lá dentro. Uma garota magrinha grita o nome da estrelinha.
Duas meninas passam de mãos dadas. O mundo é só delas, e elas sabem disso! Elas formam um casal bonito! Confirmo com o canto dos olhos que a distância diminuiu. Ele está fechando três metros. Eu sou uma pedra! Eu não sinto nada. Golpeie e me parto, mas não sangro ou sofro. Sou uma rocha! De onde eu tirei isso? Alguma poesia? Ah, claro! Mais poesia ruim de minha autoria. “I am Cinna the poet, I am Cinna the poet.” “Tear him for his bad verses!”* Rir numa hora dessas! Eu devo estar ficando maluco! Duas gêmeas usando maquiagem pesada mascam chicletes ruidosamente enquanto conversam com dois rapazes com camisetas do Rage Against the Machine, algo sobre seu professor de História.
Meu estômago embrulha; em uma vitrine espelhada percebo que o “camisa polo” está quase a meus calcanhares. Subitamente eu dou meia-volta e me choco com ele. Esbarro pesado e ele se desequilibra. A arma cai da dobra do jornal e emite um suspiro silencioso. Alguém a alguns metros à frente começa a gritar. Deus! Espero não ter sido grave! Eu me abaixo para apanhar a pistola. É uma .45. Deve ter sido adaptada para receber um silenciador. Escolha incomum para um serviço tão ordinário. Eu, pelo menos, esperava o clássico .38! Ele a apanha primeiro. Aproveito o impulso e adianto alguns passos. A gritaria aumenta. Há um clamor na multidão. Pára de correr! Pára!!! Eles podem achar que foi você e aí você está ferrado, aliás, linchado! Pronto, estou de pé novamente, andando com dignidade e com alguns metros de vantagem sobre o “camisa polo”. Ele está nervoso. Que bom, agora somos dois! Eu apresso o passo. Sabe Deus quando os seguranças vão chegar ou quanto tempo eles vão levar para ter idéias.
Um círculo se abre na multidão lá atrás. Alguém grita por uma ambulância. Dois mastodontes abrem caminho a empurrões pela turba. Nenhum deles nos dá importância. Muitos estão caminhando agora na mesma direção que nós. Abençoada vontade de não se

* “Sou Cinna, o poeta!” ... “Matem-no por seus versos ruins!”  – W. Shakespeare in: Júlio César. (N. do A.)
envolver em ocorrências policiais! É óbvio que a maioria os pais nem ao menos sabe que eles vêm aqui. Mas que vacilo! Droga! Droga! Droga!! Vai ser mais um na minha conta... Pateta!! Pateta!!! Ainda por cima não adiantou nada! Ele ainda está na minha cola e não vai sair tão cedo! Quem terá sido atingido? Homem ou mulher? Garoto? Menina? Droga! Não pensa nisso! Pensa em outra coisa! Ele me quer vivo. Claro que quer! Eles querem que os leve até a Carla. Espero que ela tenha ficado bonitinha, em casa, como eu falei! Imagina! Eu ralando meus colhões aqui e ela se arrisca por aí para comprar croissant! Se aquela pessoa lá atrás morrer, vai ser mais uma na minha conta! Quando isso vai acabar? Idiota! Tinha que ter trazido este cara para cá? Claro, idéia perfeita! Ele vai se destacar da cor local! É mais fácil de identificar! Cretino! Só para ver se iam vir! Imbecil!!! Que eu faço agora? O sujeito ainda está bem atrás. E agora? Calma... Calma! Pensa! Agora mesmo ele vai ser cauteloso... ou não! Talvez ele queira resolver na brutalidade para sair daqui antes de enxamear de polícia. Vou ter de arriscar.
Meu estômago se revolve. Eu voltei ao ponto de partida. Chego na mesma lanchonete. Vou ao balcão sem pausa. A moça me reconhece. Pergunta sorridente se quero mais sfihas e café. Digo que sim. Ela anota as quantidades e vai providenciar o pedido. Olho para trás. Encostado no corrimão da rampa está ele. Muito vermelho com o rosto duro, cara de lápide. A menina da lanchonete volta e diz para eu esperar na mesa que ela vai me servir. Ela comenta se eu sei o que foi aquele alvoroço lá para a frente. Respondo que não, mas deve ser a visita da estrelinha de TV. Ela se anima e fala sobre as celebridades que já apareceram por ali. Nossa, até o Motorhead?!? Me espanto genuinamente! Ela comenta que o vocalista, apesar de sua aparência rude, foi gentil e deixou gorjeta. Isso foi uma indireta? Ela pega uma bandeja de vime com meu pedido e me pergunta onde eu quero me sentar. Respondo que quero me sentar o mais perto possível dela. Ela dá um sorriso maroto e responde que é noiva. Digo que é apenas para conversar e ela comenta que é o que todos dizem. Ainda assim, ela escolhe uma mesa bem perto do balcão onde se abriga. Ela me entrega os sachês de molhos e deseja bom apetite. Agradeço e investigo os arredores da maneira mais displicente possível. O “camisa polo” não está à vista. Onde ele se enfiou?
Tomo meu lanche calmamente. Calmo demais. Onde está ele? A mocinha do uniforme azul puxa conversa. Insistente!!! Não vê que eu estou ocupado? Pergunta se eu sou de alguma banda. Respondo que não. Comenta que eu pareço ser “de banda”, eu sorrio Passam-se alguns minutos sem tentativas de comunicação. Continuo procurando com os olhos. Nem sinal. O que ele está aprontando agora?. Ela volta à carga perguntando o que eu faço da vida. Respondo, mentindo, claro, que sou de fora e represento uma empresa de material odontológico. Ela sorri incrédula; eu não tenho cara de representante comercial. Quem garante? Bem, ela comenta, representantes de material odontológico não fumam, estraga o branco dos dentes. Touché! “Está bem... mas sou de fora” admito e corto o assunto.
Continuo discretamente procurando o “camisa polo”, a mocinha pergunta se estou esperando alguém... Como eu sou discreto! Respondo seco que não. Ah! Lá está ele! O que ele está fazendo? Vindo diretamente para cá!!! Passo por um momento de pânico, meu primeiro impulso é o de correr. A polícia já deve estar por aqui e mesmo que não forem eles, tem os gorilas da galeria... Não dá! Vou ter de encarar como um menino corajoso! Ele se aproxima, puxa uma cadeira e se senta fixando-me os olhos. Ele não sorri, não faz cara feia, seu rosto é uma lápide inexpressiva. Eu continuo tomando meu lanche. A mocinha vem trazer o cardápio plastificado. Ele agradece e diz que está com um pouco de pressa e que vai só esperar o amigo dele comer e vamos sair. O “amigo” sou eu! Ela me olha estranho... ainda por cima isso!!! Ela está tendo idéias estranhas a meu respeito! Mais essa! Mais uma vez ela se afasta. Ele me olha novamente. Cospe baixinho suas palavras:
- Já fez bagunça demais, cara! Você vem comigo agora e me leva até a vagabunda ou eu te estouro os bagos e a gente descobre onde você mora pela papeleta do hospital.
Meu estômago se revira quando ele aponta o jornal para meu precioso baixo ventre. Pensa rápido ou se entrega, cara! Pensa rápido ou se entrega! Olha lá os skinheads da galeria... sempre em bando... Pensa cara... pensa! Skins?!? Claro!!! Pode dar certo! Eu berro:
- Movimento Skinhead! Irmão em perigo!!! Socorro!!!
Eles se viram, surpresos, meu cabelo curto os convence. Eles nem pensam, vêm correndo. Querem alguma ação fácil! O “camisa polo” olha para mim e grunhe:
- É assim, então? Tá bom!!!
Ele se levanta, tudo se passa devagar... bem devagar, em um momento sua mão está livre do jornal, no momento seguinte ele está retirando o silenciador da pistola, alguém grita “ele tem um ferro!”
*Bang*
Tarde demais para o garoto careca mais próximo, ele ganha uma tatuagem enorme no peito. Vermelha. Eles derrapam tentando mudar o vetor de seu deslocamento.
*Bang*
Mais um é abatido. O “camisa polo” vai mudando de direção a arma... Ele não está escolhendo alvos.
*Bang*
Uma garota de lábios pintados de roxo cai.
*Bang*
Um senhor que conversa em um telefone público recebe um disparo no meio do rosto.
*Bang*
Estou chocado, paralisado! Sei que preciso me mover, reagir. A arma descreve um arco pontilhado pelos tiros...
*Bang*
Mais um garoto tomba.
*Bang*
Eu estou paralisado, fascinado como um animal colhido no meio da noite por um facho de lanterna.
*Bang*
A gritaria chega a meus ouvidos. O arco está se aproximando de mim!!! Engulo em seco, a arma é apontada para a mocinha da lanchonete... uma mola silenciosa se solta em mim... eu bato com tudo em sua mão, seguro, torço, golpeio, chuto e tudo se acelera. Tudo é um borrão confuso de movimento sem significado. Há movimento vertiginoso e nenhuma explicação! Estrondos em meus ouvidos... um... dois... três... mais. Eu não sinto nada. São tiros? Fui atingido?!? Vai doer? Vou morrer? Onde está você agora, longe de mim? Eu não quero morrer assim, no meio deste rolo e longe de você!!! Não! Você não me quer, não quero mais você! Carla sim, Carla é minha! Não, não é mas que seja! Não, não são tiros, é o meu coração! O tempo acelera e desacelera como dois filmes sobrepostos, um em alta rotação e outro em “slow motion”. Meu estômago revira. As coisas vão aos poucos fazendo sentido! O relógio vai recuperando o terreno perdido. Estou socando e chutando uma massa gorgolejante e avermelhada. As pessoas gritam. Elas gritam e correm. Elas gritam e correm e se vão. Elas quase não olham para trás. Uma manada de antílopes em fuga. Eu, no epicentro deste caos! Eu estou chutando e chutando e chutando. A massa disforme a meus pés veste uma camisa polo! Não faz muito sentido para mim. Porque eu estou chutando esta nojeira? O sentido demora a surgir totalmente. Galeria! Camisa polo. Mocinha. Relógio dourado no pulso dele. Duas, três articulações erradas naquele braço! A pistola niquelada, parada a uns três metros, está finalmente silenciosa. O que seria a cabeça perfaz um ângulo perfeitamente improvável em relação aos ombros. Eu fiz isso?!? Eu fiz isso!!! Olho minhas mãos! Estou sangrando? Meus braços, pernas, botas, tudo está pelo menos respingado de vermelho vivo. Nada dói. Eu balbucio “estou sangrando! estou sangrando!” Olho em volta, procurando por ajuda. Ela está parada lá, congelada em um rictus de pavor. Está intacta pelo que eu vejo. Dirijo-me a ela, peço socorro, “estou sangrando”, digo-lhe. Ela parece recuperar a compostura. Um surto de atividade percorre seu corpo. Ela ajeita o vestido e diz que não é meu, o sangue. Eu compreendo! Eu compreendo! O primeiro impulso é correr. Olho em volta. Arrisco uma direção, olho para cima, onde estão as câmeras? Quanto tempo passou? Como a segurança ainda não chegou? Olho para ela, que balbucia, sem parar que ele ia matá-la. Não digo nada. Ela responde a si mesma, dizendo que a salvei. Eu, eu simplesmente não sei o que fazer. A polícia deve estar para chegar! Polícia! Cadeia! Merda, fodeu! Fodeu! Fodeu! Fodeu!
Percebo que estou pensando em voz alta quando ela sentencia “vem comigo”. Ela me puxa pelo braço e eu vou. Sua mão se suja no sangue. Corremos para dentro da lanchonete. Digo algo sobre as câmeras, ela abana a cabeça negativamente; “a fachada”... “o condomínio”... “multa”, acho que nesta ordem... o que ela está dizendo? O que ela está dizendo? Ela me empurra para dentro da copa minúscula. Manda eu lavar o corpo. Lavar tudo! Ela me despe e joga água em tudo, tenta esfregar minha roupa. Não vai funcionar! Ela desiste e manda eu me vestir. Estou cheio de pequenas nódoas de sangue. Não vai funcionar! Ela fala algo sobre a Marginal. Inundação, diz... ela ficou louca ou fui eu?!? Ela... ela me empurra para fora. Uma chave... estende uma chave. De onde? Ela grita um endereço. Quê?!? Ela rabisca algo num papel de pedidos. Empurra-me por um corredor lateral. Diz algo... só entendo: “sem câmeras”. Começo a entender e vôo pelo corredor! Desço, viro, desço, viro novamente... em algum momento chego ao passeio... uma confusão de gente assustada se acotovelando na marquise... porquê? Alguns correm encolhidos avenida afora. Chuva! Sim, chuva! Claro! Chuva!!! Marginal! Inundação! Claro! Ela não sabia para onde eu ia... Quando começou? Eu não vi! O motoboy com roupa de borracha! Claro!!! Como eu não percebi?!? Bendita chuva, salvadora de assassinos e lavadora de sangue! Eu me entrego à chuva.
Eu ando. Eu corro! Ando novamente. Depois de algum tempo, estou em um táxi. Para onde? Falo uma rua perto de casa. O cara me responde algo como “sem chance, inundado”! Fico sem saber o que fazer. Lembro da chave, do papel. Busco os bolsos. Aqui! Meio desfeito pela água. O principal dá para ler. Leio para ele o endereço e em poucos trinta minutos estamos na frente de um glorioso monumento à decadência do Ocidente! O prédio de apartamentos só deve estar em pé por causa de toda a tinta berrante das pixações de que é coberto das fundações ao último andar! Em meio à chuva, testo todas as chaves até perceber que a porta da rua está aberta. O elevador cospe, range e reclama, pisca sua luz de abajur mas me leva até o quinto andar. Cinco portas de cada lado, cheiro de urina humana e animal. Eu chego à porta e tenho medo de ver como é o apartamento. Abro receoso de ser atacado por uma colônia de ácaros carnívoros, mas sou surpreendido por um cheiro paradisíaco de desinfetante e limpeza. Fecho a porta e vou direto ao banheiro tirando a roupa pelo caminho. Abro a borboleta e vejo que até o chuveiro funciona! Regulo para sair água fervente e fico deixando a água correr pelas costas o tempo suficiente para me sentir bem novamente. Mais mortes... mais mortes! Quando isto vai acabar? Desligo o chuveiro, me enxugo e vou para o quarto de minha benfeitora. Abro o guarda-roupas e nada há, em tamanho ou cor, que me sirva. Olho à minha volta... um criado mudo com um aparelho telefônico. Uma mesa com um computador... Uau!!! Será que ela comprou isto com seu salário de garçonete?!? Deve ser uma fortuna este modelo!!! Aproximo-me... vários drives para gravação de DVD, webcam... o scanner é meio antigo. Na parede atrás do computador um painel de cortiça com fotos, endereços, recados para si mesma, endereços, URLs... As fotos? Normal... Sujeitos de bandas obscuras usando maquiagens pesadas e com cara de velório... Jeffrey Dammer aqui, Manson ali... um e outro instantâneo de festas, uma com um vocalista famoso, ela em seu uniforme. Nada muito interessante. Tiro a colcha da cama, enrolo-me e vou para a sala. Melhor ela encontrar a cama desfeita que um estranho nu na sala. Eu rio imaginando a cena. Que horas são? Já está meio que escurecendo, mas isso é normal quando chove tudo! Olho para a cozinha e vejo que são... oito?!?! Não pode ser! Ah, claro! Sem pilha... Ligo a TV. Vou mudando os canais até encontrar o noticioso policial das cinco... hmmm já sei que horas são hahaha!... o apresentador fala raivosamente sobre o acontecido na galeria. Isso me interessa! Ele fala sobre o “vagabundo” que abriu fogo dentro de uma galeria, matando... quantos?!? Nossa! Tinha tanta bala lá dentro?!? Oito fora o criminoso? Uau!!! Okay, sem pânico! O quê? A polícia acha que o vagabundo foi linchado?!? Ótimo! Será?!? Não! Eles adoram dar pistas falsas para não alertar o criminoso! Mais um motivo para eu sumir! Sumir com a Carla! Carla... Carla... Café! Isso!!! Café é o que eu preciso! Vou à cozinha e vasculho até achar todo o necessário. Preparo uma garrafa... imagino que vai ser uma longa noite. Se minha garçonete me salvou, só pode ser por algo mais que eu haver acidentalmente salvo sua vidinha pacata. Dinheiro... só pode ser isso... ou talvez sentir a adrenalina de ocultar um criminoso. Talvez os dois... nããã... é só por grana!!! Okay... posso dar uma força! Uns mil, talvez... é sentar e esperar... eu sei o que ela quer. Eu sei o que ela quer!
O celular cacareja em algum lugar de minha roupa encharcada. Saio correndo a sua procura. É de casa. Carla! Atendo. Ela está à beira de um colapso nervoso. Umas duas ou três doses falam através de sua voz. Eu a acalmo. Estou bem! Não, não estou machucado! Sim, fui eu mesmo que o matei. Não, eu não confio no que o noticioso falou, devemos considerar que agora a polícia está atrás de nós! Sim, eu estou seguro. Sim, foi uma garçonete que acha que a salvei por querer. Não, não falei nada... ela nem está aqui... sei lá, deve estar prestando depoimento! Não, não sei. Sei lá, se fosse para ela me entregar, nem teria me ajudado lá! Não, não sei, acho que é dinheiro! Sempre é dinheiro! Não, não dá, a Marginal está inundada. Não, não se preocupe, eu estou bem. Claro que pode, quando quiser, eu estou bem e pretendo ficar aqui pelo menos até minha roupa secar ou amanhecer, o que vier primeiro. Não, não tenta! Você está segura aí! Não, me escuta! Escuta! Fica aí, come alguma coisa.. é... você fez compras! Fica bem, se cuida por nós dois! As coisas vão se ajeitar... amanhã... amanhã a gente vai sumir! Sim! Sim... Sim!, já disse, amanhã! Calma... calma... não, eu não estou gritando! Olha, fica tranqüila, eu estou bem, menina.. sério mesmo! Sim, eu diria se não estivesse... você sabe... é... foi, foi difícil, mas eu tive ajuda da sorte. Não, não vou me arriscar. Pode ficar tranqüila... é... isso... fica bem limpinha e quentinha e cheirosinha... vou estar em casa antes de você se lembrar de mim... isso... e, olha... não bebe mais! Claro que bebeu! Eu percebi, uai! Okay... tudo bem, não importa... só não toma mais... tudo bem, um gole pode, mas só um golezinho! Okay? Você vai fazer isso por mim? Isso! Boa menina! Prometo... prometo! Isso! Vai, vai lá! Isso... vai agora... você está muito ansiosa... não, não, eu entendo... só tem que não precisa mais, eu estou aqui e estou bem... é... tudo bem, quando você quiser... não, acho que não vou conseguir dormir... pode... pode, quando quiser. Isso, vai lá... também! Eu também! Beijo! Vai! Beijo! Boa noite! Isso. Eu também, tchau! Okay, eu vou ficar! Tchau! Desligo. Espero que ela fique bem...
- Casado, então? – às minhas costas.
- Ei! Como você entrou?!? Quase me matou de susto!
- Eu? Pela porta! Eu que deveria estar assustada! Entro em casa e vejo um homem pelado falando ao celular na minha sala! E nem é o meu aniversário! – Ela ri.
Faço menção de puxar a colcha para cobrir minha nudez. Ela me impede com um gesto.
- Fica! Assim eu sei que você está desarmado. – ela ri.
- E aí? Como foi lá?
- Normal... as perguntas que eles sempre fazem...
- E você?
- Ah, disse que acho que eles devem procurar por você!
Meu sangue gela!
- Como assim? Você...
- É... Um cara louro daquele tamanho que consegue matar um outro na porrada deve ser perigoso, mesmo que tenha matado um doido! – Ela gargalha com gosto.
Eu alivio... desabo em cima da poltrona. A menina é das boas! Inventou uma descrição para afastar a polícia. Eu gosto dela! Por sinal, ela está bem diferente! Jeans apertados, botas de trekking, uma jaqueta impermeável e cabelos soltos. Baixinha... um e cinqüenta e cinco no máximo! Muito bonita... Dezoito? Dezenove? Deve ser uma criança, mas uma criança linda! Ela me joga a sacola que tem nas mãos. Abro e reconheço minhas compras! Como fui me esquecer delas?!?
- De nada! – diz divertida e começa a resgatar minhas roupas do meio das poças de água que elas deixaram no chão.
- Ah! Obrigado... uhhhh...
- Ana, e você?
- Eu? Pode me chamar de “você” mesmo!
Ela pára e me encara. Os olhos negros faíscam.
- Cara, eu não livrei tua cara para te entregar agora!
- Tá bom. Me chama de Paulo.
- Você não tem cara de Paulo. Nome falso?
- É.
Ela dá de ombros.
- Nome falso é melhor que nome nenhum.
- E não é mesmo? – Rimos.
- Eu fiz café... quer?
Ela se senta e assente. Quando a estou servindo, acrescenta:
- Trate-me bem!
- Claro! - Nem precisa falar.
- Bom menino! – ela dá tapinhas em minha cabeça como em um cachorro que acabou de trazer o jornal. Petulante! Muito petulante!
Sirvo-me e sento em frente a ela. Alguns segundos se vão em silêncio. Limpo a garganta e pergunto:
- Quanto?
- Quanto o quê?
- Com quanto posso ser gentil em agradecimento?
Ela gargalha. Sua gargalhada me incomoda, parece uma hiena. Tão vulgar... tão ameaçadora... Quem é esta mulher?
- Não tão é simples assim... Melhor! É bem mais simples, mas depois a gente fala nisso... Vou tomar um banho e preparar o jantar. Gosta de frango?
Minto que sim. Ela se vai e leva minha roupa consigo. Fugir, sem roupa, não dá. Estou à mercê... por enquanto. Vamos ver o que ela quer.
Ela se demora no banho. Conto cada um dos quarenta e cinco minutos. Ela sai embrulhada em uma toalha enorme. Os cabelos pingando. Ela se dirige ao quarto e, uma eternidade depois, reaparece na sala. Está vestindo um roupão de banho um tanto grande para seu pequeno corpo. Os cabelos, ainda úmidos, pendem brilhantes. Ela sorri e, de um estalo, fala:
- Ah! Eu trouxe um presente! – ela corre para o quarto e, na volta, me joga no colo um aparelho de telefone celular azul metálico.
Olho para ela sem entender.
- Tirei do seu defunto, achei que você ia querer um troféu, mas se você não quiser, eu quero!
- É, pode ser útil... – comento – Obrigado.
Ela sorri satisfeita. E se enfurna na cozinha. Passados alguns minutos e por absoluta falta do que fazer, vou atrás dela. A pequena demonstra desenvoltura com os apetrechos de cozinha. Em pouco tempo, estamos saboreando um frango com grão-de-bico que, devo admitir, supera minhas expectativas. O arroz branco cheira bem.
Comemos em silêncio. Não paro de pensar sobre o que esta criatura pode estar querendo. Ela sente minha preocupação e sorri discretamente. Uma ou duas vezes tento puxar conversar mas ela simplesmente ignora a deixa. Na última vez, sou informado que a hora da refeição não deve ser atrapalhada por assunto algum. Algo sobre o budaísmo e a função espiritual do alimento... Acredita? Função espiritual do alimento, bah! Parece até Sua Santidade falando!
Terminamos. Ela tira a mesa, raspa os pratos e tigelas em uma sacola de plástico marrom, deposita-os na pia, aproxima-se de mim, afaga meu cabelo e se vai rumo à sala.
- A louça é sua... põe água a ferver e me prepara um café. – comenta ás costas.
- Eu fiz agora há pouco... – respondo.
- Não tem problema, eu quero outro... novo. – ênfase no “eu quero”.
Okay, milady... você quem manda. Enquanto a água ganha temperatura, vou dando um jeito nos talheres e copos e caçarolas e pratos fundos que hospedaram nossa refeição “en passant” em sua viagem até nossos aparelhos digestórios. Detesto lavar louça! Alguém deveria inventar louça comestível ou auto-limpante.
O café sai muito bom, perfumado e forte. Investigo os armários até encontrar um jogo de xícaras decente e uma bandeja. Na dúvida entre mel, adoçante ou açúcar, levo os três. Serviço completo. Impecável se você ignorar o fato de que ainda estou nu. Deposito a bandeja na mesa de centro, de costas para ela. Seu pé passa pela minha bunda.
- Jamais dê as costas a quem você estiver servindo!
- Okay, vou me lembrar. – estou começando a entender qual é a dela.
- Ótimo, espero não ter de ensinar isso novamente! – o tom é indulgente e ameaçador. Algo me roça a virilha. Uma ponta, couro... um rebenque! Ai ai ai... onde eu vim me meter!
- Sim, madame! – respondo neutro. – adoçante, açúcar ou mel?
- Você pega as coisas meio devagar, né? Mel!
Bem, acho que vou ter de submeter por enquanto. Eu começo a servi-la. O rebenque espoca em minha nádega direita.
- Não se curve para me servir... Quero você é de joelhos!
- Okay, madame! – olho-a de cara feia.
O rebenque novamente canta em minha nádega.
- Três coisas coisas: Chame-me milady ou senhora; Sentar nos calcanhares não é ficar de joelhos e, Por fim, quando você receber uma correção, agradeça! – sua voz é suave e imperiosa.
Isto está ficando ridículo! Paciência... paciência...
- Sim, senhora. Obrigado, senhora. – murmuro entre dentes, prestes a voar-lhe no pescoço.
Ela me afaga o rosto com a ponta do rebenque, posso vê-lo bem, agora. É de equitação, mas tem sua ponta picotada... deve doer mais do que machuca.
- Mais uma coisa... meus criados me servem com um sorriso no rosto... Sorria!
Eu sorrio...

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