terça-feira, 10 de maio de 2011

II - Drakkar Noir - A Dama de Espadas



II – A dama de espadas
por chrystian r. silva
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Ele dorme... já faz mais de setenta horas que ele dorme. De tempos em tempos (uma vez que não é possível saber se é dia ou noite), troco seus curativos e o viro na cama. Ocupar a mente e manter-me longe do horror dos recentes acontecimentos. Ele dorme, jaz em um sono tão profundo que se não fosse a respiração pesada, dir-se-ia morto. Ele dorme longe dos vivos, dos seus problemas, da mulher que o abandonou, de seus ferimentos e suas mágoas... e longe do álcool. Eu também estou longe do álcool há setenta horas. As pálpebras querem se fechar. Os olhos queimam. “Este homem se arriscou por você, Carla... cuide dele... Concentre-se nele e tudo estará bem.”
O sono me leva por alguns segundos, de quando em quando, imagens voltam a minha mente... imagens grotescas de um quase assassinato. Meu quase assassinato. Meu assassino... meu anjo. Não o reconheci a princípio, mas um momento antes de sair, aqueles olhinhos maníacos apresentaram um lampejo de algo quase definível como humano... algo invulgarmente familiar. Espere! Ele acordou!


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Ele abre os olhos. Tão sólido, em suas bandagens maculadas de sangue. Sangrou por mim, o pobrezinho, o filho da puta. Não vou me apegar... não desta vez.
- Oi, benzinho... como se sente?
Pronto... lá vamos nós de novo.
- hmnrf...
- Quê?
- Que horas são?
Ele fala em um tom gutural. Um arremedo de voz humana.
- Você deveria perguntar que dia é hoje...
- Como?!?
Pronto... ele está acordado...
- Dormiu bem?
- Minha cabeça não pára de doer.
- Ainda bem que você tem uma cabeça para doer.
- Mmmmmm...é...
Ele está de olhos apertados... fotosensibilidade... ressaca?
- Não... eu sou assim mesmo... não gosto muito de luzes.
- Ihhhhh... pegou a mania do Raul?
- Estou acostumado a me perguntarem...
- Está com fome? Eu tenho algumas coisas aqui... não é nada muito...
- Dá...
Acorda mal-humorado... Bem, depois de uma daquelas... Eu lhe entrego um sanduíche enorme e frio. Ele come feito um huno.
- De onde você conhecia o cara do banheiro? – Ele comenta displicente entre uma mastigada e uma mordida.
- Eu o conheci ali, no bar.
- Não. Vocês já se conheciam. Melhor... ele estava atrás de você, mas você só percebeu tarde de mais... quase morre sem saber.
Como ele soube? Como é possível?

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Permanecemos nos olhando. Silenciosos. Eu destampo uma garrafa térmica e sirvo-lhe café quente em uma caneca de ferro. Está fervendo. Café de Raul. Estendo-a. Ele segura pelo corpo da caneca, mantém minhas mãos entre as suas por alguns momentos e, aparentemente sem se importar que suas mãos fiquem vermelhas, beberica do generoso líquido. Ele tem o olhar de quem transcendeu o limite da dor... todos os limites da dor. Ele me observa. Simplesmente observa e espera que eu mastigue minha resposta. É evidente que ele espera uma mentira. Eu me concentro em minhas unhas. Por fim, exasperado, ele respira fundo e limpa a garganta.
- Mereço algumas respostas.
Meu sangue ferve porém controlo minha voz para que soe o mais natural possível.
- Eu não pedi para você me salvar.
- É.
Sua concordância me desarma. Baixo a cabeça, suspiro e estou prestes a começar a falar.
- Se não quiser falar agora, não fala.
- Okay... coma mais... descanse. Depois eu te conto tudo.
Tiro mais um sanduíche enorme do saco de papel. Entrego. Ele ainda está faminto. Tiro ainda uma garrafa de vodka. Mostro-a e pergunto com os olhos.
- Ainda não. – Responde lacônico. – Depois...

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- Eu sim.
Rompo o lacre, abro a garrafa e tomo um quarto antes de pensar no que estou fazendo. A vodka é engraçada... desce como seda... sobe como um balão de borracha... você nem percebe e já está alcoolizada. Esquenta de mansinho. Dali à pouco, se você bobear, está cavalgando o novilho. Eu preciso dela, da Santa Vodka. Ela não se liga em confissões... ela te dá a coragem, a confissão você improvisa com o primeiro bêbado à sua direita no reservado do banheiro. Se esse moço quer me comer, vai ter de me beijar. Enrubesço mas mando à merda tudo. Mais um quarto da garrafa e vou estar no ponto. Estou  zonza. Olho para ele... tão inocente, o pobrezinho... Machucado, cansado, mal-humorado, doce, tesudo, pronto para o abate... opa... olha a bebida falando... hahaha... ele está ali, nu, exceto pelas bandagens, comendo mais um sanduíche frio e tomando um café fervendo. “Mereço algumas respostas” ele disse... eu sei o que você merece... só mais um pouco... de tempo e de vodka... e você vai ver... eu prometo.
Eu tiro a minha blusa porque esta é a minha primeira solução para o trinômio “vodka+quarto+homem = hmmmmm hahahaha”... eu rio alto e ele me olha esquisito... um misto de cansaço, tesão e medo. Isto é automático e é bom... me faz sentir viva, pulsante como minha parte, já úmida e quente. Há uma legião de anjinhas, todas putas, sussurrando em meus ouvidos, me pedindo para fazer coisas, as diabinhas no outro ombro coram. Abençoadas anjinhas. Eu vou montar o novilho... vou segurar a correia e comandar suas corcoveadas... o show é meu. É a minha primeira afirmação enquanto indivíduo. Meu credo.

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Ele me olha... desconfiado o meu anjinho... eu me levanto. Meus movimentos são precisos e intencionais... movimentos de bêbada tentando fingir-se sóbria. Mão nos quadris. Quase uma espanhola. Quase a Pilar de Ernest. Solto o laço que segura minha saia... ela me escorre até aos pés... deve ser uma visão magnífica... não conheci homem algum que não tenha ficado hipnotizado com esse gesto. Parada, um monolito, uma esfinge. Argh... é a bebida! Vem cá, meu novilhozinho lindo... Deixa a mamãe cuidar deste couro. Eu avanço. Uma máquina de guerra, uma máquina fascista.

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Meu novilho recua, Eu sou a serpente e este é meu bote. Agarro-lhe pelas bandagens, isso dói mas ele resiste... não emite um suspiro. Eu o seguro, eu o derrubo no catre. Ele geme... prazer ou dor? Não importa, não para mim... Ainda assim, ele geme gostoso. Tenta balbuciar, o pobrezinho, mas alguma coisa o impede, minha boca. Meu sexo úmido se encaixa em seu púbis. Quente, muito quente! Febril. Lábios rígidos, meu novilho. Ele balbucia, eu não ouço. Cala esta boca carnuda, meu novilhozinho lindo! Eu sou tua enfermeira e sei o que é melhor para ti! Eu sou tua mamãezinha! Vou te dar de mamar! Argh! Eu quero mais um gole! O arrepio percorre minha espinha acima enquanto a vodka desce.  Eh, boi! Mamãe não mandou se mexer! Eh, boi! Ele corcoveia... É disto que estou falando! Ah! Ah! Ah! Ah! Ah! Ah! É divertido! É bom! Dá um tesão que eu nem te conto! Minhas pernas abraçam seu corpo, as mãos agarram as bandagens do tórax. A mão livre? Ah, esta por nada no mundo ia largar a garrafa! Ele ameaça, eu lhe mostro que não está em posição de ameaçar. É um desperdício de boa vodka, mas ele entende o que eu quero dizer. Ele urra quando a bebida passa pelas bandagens e toca a pele destroçada. Delicioso ouví-lo! As faixas se tingem de vermelho fresco. Ainda assim ele corcoveia. Ele é forte, é ótimo e resiste firme até eu ser inundada por um indizível dissolvimento. Eu sou uma só com o mundo. Desconexa e em comunhão com meu novilho, minha montaria! Todas as luzes do mundo se tornam uma só luz, e ela vibra, pulsa em mim, bem na base, onde toda vida começa! Novilhozinho, mamãe te ama! Mamãe te amaaaaaaaaaaahhh...
Eu me abraço a ele, afago o carpete do seu cabelo. Novamente inconsciente, sua carne fibrila quente... beijo de novo esta boca desacordada. Dorme, meu anjinho, dorme. Mamãe vela o teu sono. Ele dorme uma vez mais.

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URGH!!! Minha cabeça dói! Maldita vodka! Ele está dormindo a tempo demais. Sua febre controlada. Seus ferimentos cuidados. Serão mais três dias de Amoxicilina e Diclofenaco, mas ele vai se recuperar. Sua pele está cicatrizando... bendito Bepantol! Argh! Como dói minha cabeça, meu Deus!! Deus?!? Deus não tem nada a ver com isso! Eu sim! Pronto meus delírios de novo! É tudo o que nós precisamos! Nós?!? Olha só! Agora ela é a esposinha dedicada que não resiste a um macho com o pau duro ou copo na mão! Hmpf! Se eu ignorar passa rápido... E aí, ele gostou do tratamento que lhe demos? Nós quase o matamos!!! Bem, é verdade, mas ele morreria feliz!
Ele está além de tudo isso; é quase uma pena trazê-lo de volta, mas ele precisa de alimento, precisa de água e eu, preciso dele. Não gosto disso, mas preciso dele ou vou enlouquecer. Não quero, não vou enlouquecer! Gasto alguns minutos tentando acordá-lo. Primeiro com beijos, depois cócegas, depois ainda, chacoalho meu novilho. Por fim, desisto dos métodos humanitários e dou-lhe beijos estalados junto ao ouvido. Nunca falha!
- Rmfl hmblf...?
- Quê?!?
Ele pára, esfrega os olhos e tenta novamente:
-          Que horas são? Que dia é hoje?
Gutural... eu adoro essa voz de cama. E como ele se preocupa com as horas.
-          Você já me perguntou isso.
-          ... já...?
-          Já – encerro a questão – Toma, você precisa de um banho. – Lanço-lhe uma toalha – Quer ajuda?
-          Não!!!
Ele estremece e recua. Tadinho! Assustei-o.

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É um exercício de penosa paciência vê-lo tentar levantar-se. Um potro recém nascido. Um bebe aprendendo a andar. Ele finalmente pisa sobre seus pés, frágil colosso envolto em novas faixas.
-          Levanta os braços, bebe, deixa eu tirar os curativos.
Obediente, é agraciado com boas novas, os vergões cederam lugar aos hematomas e as cascas dizem que o processo de cicatrização já está adiantado. Beijo seus ombros e dou-lhe uma palmada na nádega:
-          Vai!
Deixo suas roupas, lavadas e secas sobre a cama. Antes que ele desligue o chuveiro, já estou dormindo ( ou quase ). Ele volta cheirando a limpeza, minhas narinas acusam sua presença antes que a imagem entre em foco em minhas retinas. Parado , ali na minha frente, ele se parece com algum monumento ao soldado desconhecido que tombou em alguma guerra. Pleno de força, mas sem vida.
-          Que cara é essa novilho? Sonhou com cobra?
-          Estou morto.
-          É... quase isso...
Ele se veste. Poucas coisas são mais sexy que ver um homem se vestindo. Nem ve-lo despindo-se é tão bom. Noves fora as necessidades básicas, e agora? Contar a ele sobre o Triste Fim de Policarpo Quaresma? Dizer a ele que o lunático que quase nos matou lá embaixo era alguém que eu desgracei?

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-          O que aconteceu esse tempo todo? – olhando a folhinha, punho no quadril.
-          Nada de mais, você dormiu, eu cuidei de você; você acordou, eu abusei de você; você dormiu de novo. Agora acordou e tomou banho.
-          Hmmm...
-          O Raul veio algumas vezes ver como você estava, queria te levar a um hospital.
-          E... ?
-          Se você desse entrada com indigente ia sair como presunto.
-          Então estou te devendo a vida?
-          Esquece, chumbo trocado.
-          É... foi bom?
-          O que?
-          O abuso.
-          Ah! Serve.
-          Só isso?
-          O que você queria?
-          Sei lá... “serve” é foda...
-          Tá bom: “ohh, grande reprodutor, está humilde serva agradece pelo privilégio de trepar convosco”... Melhorou?
-          Hmpf...
-          Foi umazinha legal.
-          Ô...e lá no bar?
-          Que tem lá?
-          Qual era a do gajo?
-          Ah... o que você quer saber?
-          Por que ele te queria morta?
-          Isso muita gente quer...
-          Não enrola, Carla!!!
-          Tá bom, eu conto ...
-          Aleluia!
-          Ó, parou a palhaçada!
-          Vai!
-          Calma, é assim... eu saí da roça...
-          Pera lá... agora é “esta é a sua vida”?
-          Ei, cara... você quer ouvir ou não?
-          É relevante?
-          Se não fosse, eu não contava...
-          Então tá, prossiga...
-          Você gosta de mandar, né?
-          Você ia dizendo...?
-          É... não dá para confrontar... como disse, eu saí da roça. Nada do tipo gata borralheira, eu estudava na cidade, dormia em casa de meus tios, aos fins de semana, ia para casa. O esquema de todas da minha idade... colégio, paquera, cinema, tudo...

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-          O que tem isso a ver?
-          Eu chego lá. Como muitas outras, minha carreira com um, assim chamado, caçador de talentos. Ele passou pela minha cidade.
-          Que cidade?
-          Não importa, você nunca ouviu falar mesmo... bem, ele passou por lá com toda aquela história, as meninas bonitinhas se inscreveram e foi aquele “frisson”. Eu entrei de gaiata... eu era feiosa e magricela, fui só para acompanhar minha prima, mas ele me viu e disse que eu era uma “beleza exótica”... você já viu eles falando isso?
-          ...
-          É. Aí foi aquela loucura, o cara queria me levar de cara para São Paulo. Meu pai deu pití... não queria de jeito nenhum. A nmãe se deslumbrou. No quebra, o pai ficou e eu e a mãe fomos para não mais voltar... eu, pelo menos...
-          Sei, ela foi para te cuidar...
-          É, eu achava que era isso... mas a mãe estava mesmo era querendo se sentir especial.. sabe? Tipo... “esta é a mãe da modelo fulana de tal”, sabe? Ela estava toda deslumbrada. Aí não deu outra, ela se achava minha empresária. “Sem transparências!” Ela dizia “Essa pose está muito arreganhada”. Era bem constrangedor e todo mundo ficava fulo.
-          E eles, agüentaram?
-          Claro que não! No começo eles davam umas agulhadas, mas ela não entendia... ou fingia que não. Mas teve um dia que o fotógrafo chamou o dono da agência aos gritos. Era um desses que fotografam aquelas mulheres maravilhosas para revistas masculinas..
-          Ai... Tipo o...
-          É... por aí... para você Ter uma idéia, o dono da agência estava lá paparicando o cara... ele virou as costas e minha mãe atacou... o cara quase um troço...
-          Não sei como eles não te mandaram passear na hora!
-          Foi o que ele disse. Ele espinafrou dona Márcia. Claro, ele precisava lustrar o ego do cara... do fotógrafo, né? Disse para a mãe que meninas como eu ele arranjava duas dúzias em dois minutos... e era verdade... falou que ia me dar uma última chance porque foi com a minha cara, mas que era para ela nunca mais aparecer.
-          É... como dizem? Bateu...
-          Eu sei... Mas trocar o anonimato no “arraiá da curva torta” pelo ostracismo em São Paulo, foi o fim para ela. A partir daí a nossa relação foi ficando cada vez mais distante, eram doze a dezoito horas de atividade com sorte, sem sorte, eu tinha mais tempo, mas não tinha grana, entende? Eu tinha de correr para ficar no mesmo lugar. Quando a gente se encontrava eu era uma alienígena contrangida com as tentativas inúteis de comunicação entre a gente... não havia mais parâmetro...
-          Eu sei...
-          Não sabe não, mas, enfim, em pouco tempo, ela se viu reduzida a uma empregada doméstica colecionadora de recortes a meu respeito, e, eles estavam mais numerosos. Eram capas e mais capas de revistas femininas, de moda, todas, todas elas, as nacionais e volta e meia alguma estrangeira. A imprensa dizia que eu estava namorando este cantor ou aquele jogador de futebol... até um senador me arranjaram... eu conheci o cara mesmo, mas ele era viado... viadão, sabe daqueles que dá a mão mole e fala afetado... para o povo ele rugia, mas em casa ele miava e fininho... hahaha
-          Interessante, mas...
-          Tá, calma... Nesse meio tempo, apesar de eu me sentir uma jupiteriana, dona Márcia era meu porto seguro. Não dava, claro, para contar sobre a minha vida... era uma mentira aqui, um desmentido lá e boa, mas ela me dava colo e eu, toda vez que viajava, a trabalho ou não, trazia um mimo para ela, era uma foto autografada de alguém famoso, uma lembrança de algum lugar, uns eletrônicos meio loucos, mas ela estava se sentindo muito só e sem importância... até que um dia ela manifestou o desejo de ir embora... eu argumentei, pedi, mas não teve jeito. Aí eu fiz a única coisa que podia fazer... reaproximei ela e do pai... e, em pouco tempo, eles estavam juntos de novo e eu mandava uma forcinha todo mês.
-          Sei... eles ganhavam patrimônio e você autonomia.
-          Credo! Não era assim!
-          Mas no fim das contas era isso, não?
-          É, isso é...
-          Quantos anos você tinha?
-          Sei lá... vinte, vinte e dois... Vinte... isso mesmo, vinte.
-          Ahnnn... deixa eu adivinhar: depois de ficar sozinha você percebeu que, além de ser seu suporte emocional, a sua mãe era também a administradora do teu dinheiro, né?
É... devo admitir que ele sabe entender e chegar logo ao ponto...
-        Sim... Mas ainda demorou muito para eu perceber que, sem ela, eu pagava o dobro pelo tomate, o triplo pela carne e o quíntuplo pelo aluguel...
-        Mas aí já era tarde, não?
-        É... eu já tinha passado da idade de decolar, não sabia fazer nada além de posar para fotografias e, tirando o que meus pais investiram da mesada que eu mandava, o que não daria nem para o cheiro com o nosso custo de vida, eu levava da mão à boca.
-        Olha, a tua história é fascinante, mas eu não sei...
-        Eu chego lá... e então chegou o dia temido! Eu havia exaurido minhas economias, estava endividada até três metros acima do pescoço e não tinha mais crédito. Para piorar, minha área tem... tinha... um turn-over muito rápido. E eu era o que nós chamávamos arroz de festa, estava em todas para garantir algum. Custa caro estar em evidência, mas nem tanto quanto voltar a estar... ou seja... eu era a decadente da vez. Eu aparecia até naqueles dominicais retardados a custo de muitas horas de cama com cada vez mais gente... gente cada vez menos influente... mas mesmo assim, nada disso parecia resolver. Mas eu estava decidida a não voltar para casa com o rabinho entre as pernas.
Eu paro, acendo um cigarro e dou algumas tragadas. Meu novilho me olha quase que indiferente... é... não é mais minha dor... parece pertencer à vida de uma outra pessoa... há muitos séculos e em outro mundo.
-        ... Foi aí que ele apareceu. Eu estava em uma dessas bocas-livres que a gente só se dispõe a ir porque está sem energia em casa (cortada), sem nada na geladeira e deprimida a mais não poder. O cara era cinqüentão, bonitão, elegante... sabe aquele cara que toda mulher queria estar do lado? O cara que te abre a porta e te puxa a cadeira... pois é... homem de verdade, meu bem... nada daqueles coroões babacas e endinheirados que viram adolescentes ao primeiro cheiro de calcinha... bem... verdade seja dita, ele era bem endinheirado, isso dava para sentir de longe... sabe aquela aura que envolve as pessoas cuja conta bancária tem saldo contado em dez ou doze dígitos?
-        Hmmmm... sei.
-        Sabe nada... Mas enfim, o cara era um gato. Com alguma conversa, me convidou para passar uns dias em uma pousada na serra com ele.
-        Assim, a seco?
-        Mais ou menos... ele era sutil, mas direto... mencionou que encontraríamos alguma forma de me compensar pelo tempo que eu desperdiçaria a seu lado. Viu? Ele disse de uma forma bonita que sabia que eu cobrava pela minha companhia... rsrsrs Pensei: “Nossa! Tirei a sorte grande!!!” Todas as outras ficaram morrendo de inveja, teve uma ou outra que até se insinuou, mas o cara manteve-as delicadamente distantes... ele tinha classe até para dar um fora.
- E você?
- Fui, claro! O cara era demais! Era o tipo que abria a porta e puxava a cadeira para a gente sem parecer um babão afetado. Na cama eu parecia uma principiante. Foram as duas semanas da minha vida!
- E como acabou a “Love Story”?
- Esquece este sarcasmo, cretino. Eu sabia que era só curtição, nunca me iludi, mas ele me tratava como uma dama... da cama para fora. Foi ótimo. O saldo da temporada foi uma troca de telefones e um presentinho que me manteve as contas por dois meses.
- Rico assim?
- Bem mais, meu bem, bem mais...
- E aí?
- Aí que antes do dinheiro acabar ele me ligou dizendo que tinha um serviço e que só confiava em mim para fazê-lo.
- Serviço?
- É... marcamos em uma cafeteria. Ele parecia muito abatido, estava tenso e tinha olheiras monumentais. Realmente lamentável. Foi  muito gentil, mesmo naquele estado. Eu estava compadecida. Em poucos minutos contou-me que era casado (muito bem casado, aliás) e que, sua ausência – muito agradável, ressaltou – fora uma oportunidade de um detetive particular seguir sua esposa.
- Entendo... onde você entrava nisso tudo?
- Foi o que perguntei...
- E... ?
- Deixa eu continuar!
- Okay...
- O tal do xereta descobriu que a dona estava de caso com um fulano. Parece que o caso era antigo porque ela até alugou um apartamento para ele. Acho que era paixão de meia idade, sabe?
- Sei.
- Então, só tem que o cara ainda amava a esposa.
- Hmmm... começo a entender...
- Pois é... eu também comecei.
- E aí?
- Aí o cara me pediu para armar um flagra para o amante.
- Como assim?
- Assim: eu seduzia o sujeito e ele dava um jeito de ela pegar  a gente no flagra, de preferência no apartamento que ela tinha alugado.
- Tipo, para ela se desiludir?
- É, algo assim...
- Que patético!
- Foi o que eu pensei também, mas afinal, o corno era ele e, no fim das contas, a grana era boa.
- Grana?!?
- Claro! Você me acha com cara de madre Teresa?
- Quanto?
- O bastante para eu não pensar duas vezes.
- E como a história termina?
- Termina? Ela está só começando.
- Como assim?!?
- Assim: era pra ser um serviço simples, chegar, chavecar o cara, ganhar a confiança dele o bastante para ele me levar para o apê e aí só ver o circo pegar fogo e sair com meu dinheiro.
- Mas não foi simples, né?
Memórias amargas se misturam às doces. Eu não sei onde acabem estas e começam aquelas. Um volume incômodo se forma em minha garganta e me turva a visão. Este novilho sabe espetar de um jeito que dói. Não, eu não vou chorar. Droga! Eu não vou chorar de soluçar! O, merda! Eu não posso desabar!!! Por favor, pára de tremer, boca!!! Droga! Droga! Droga! Ele me abraça, tão quente, tão protetor, eu preciso do beijo dele. Esta boca macia me anestesia, me faz lembrar de outra boca, muito, muito tempo atrás... eu dou conta disso com um espasmo de surpresa. Empurro meu novilho para longe, ou antes, desprendo-me dele violentamente; isto meda impulso para correr ao vaso e vomitar tudo o que não tenho no estômago. Porque seu beijo tem de ser tão bom, novilho? Tão parecido com o dele? Sua mão me alcança o ombro e o afaga  com ternura. Homem, muito homem, ele me fala:
- Relaxa, toma um banho. Não fica assim.
Obrigada, novilho, você é muito bom para a mamãe. Eu seguro a sua mão e afago com meu rosto.
- Obrigada, lindo – balbucio – Obrigada.
Tento me erguer, ele me ampara. Delicadamente sou despida. Como pode um homem de aspecto tão brutal ser tão suave? Ele me despe com carinho. Sua mão me ampara enquanto a outra abre o chuveiro e regula a temperatura da água. Ele molha a esponja plástica e faz espuma. Eu me sinto uma criança. Ele me banha como a uma criança. Sinto-me segura. A água pára de cair, ele puxa um toalha seca. Toalhas limpas e macias. O paraíso deve ser assim. Uma enorme toalha fofa e perfumada que nos seca e protege. Meu Deus, ele está me vestindo!!! Conheço pessoas que matariam por um homem que as vestisse! Ele me leva até o catre e me deposita suavemente. Sou um bebê em suas mãos. Tento falar.
- Shhh...durma... depois a gente conversa.

Eu acordo com um cheiro paradisíaco nas narinas. Abro um olho desconfiada de que morri. As nuvens de fritura escapam pela ventilação das janelas pintadas.
Corro meu olho aberto pelo quarto. Ele está de costas para mim, executando passes mágicos sobre um fogão de campanha. O cheiro continua indefinível mas agradável. Ele está de cueca boxer...deve ser para não empestear a roupa com fritura. Esperto o novilho. Ele cantarola algo com seu barítono rouco. Lonesome Town... a letra é triste, mas na voz dele é um convite ao suicídio. Se ele tivesse, eu diria que canta com o útero. É pungente. Ai, Meu Deus!!! Que cheiro é esse? Meu estômago ronca. Resolvo me dar a conhecer.
- Aham!
Ele interrompe a canção e se vira.
- Oi, acordou?
- Não. Sorrio.
- O jantar está quase pronto.
- Jantar... qual é o cardápio?
- Omeletes e porquinho flambé.
- Onde você arranjou o fogareiro?
- O fogareiro foi fácil , Raul trouxe. O resto tive de chantageá-lo para que comprasse.
Ele traz pratos rasos enormes e fumegantes. O sabor é melhor que o cheiro. Limpo o prato sei uma palavra. Ele demora um pouco mais. Olha ansioso esperando aprovação. Deve ser a fome... nunca comi nada tão bom. As omeletes são grossas, têm legumes ralados e orégano. O porco, bem, o porco faria um israelita mandar ao inferno a Lei.
- Divino – digo sem mentir.
Seu rosto se ilumina. Criança grande!
Ele abaixa a cabeça sussurra um “obrigado”. Eu afago o carpete de seu cabelo militar... lindo pêlo, novilho. O grisalho está se alastrando pela cabeça, já contaminou até a barba.
- Ela deve ser cega ou louca para partir este coração – comento distraída.
Ele me olha com fúria, com agonia, amargura, paixão e muito mais do que eu posso descrever. Seus olhos estão inundados pela dor. É triste ver um olhar assim. É triste imaginar o que marcou tanto e tão fundo.
Seu silêncio é muito eloqüente.
- Sabe?
- Hã?
- Quando tudo já estava perdido quando eu tentei ser só amigo...
Ele silencia. Por um momento penso que ele vai chorar, mas sua dor está além da lágrima. Sua dor é um buraco negro. Cospe, novilho, cospe que vai te fazer bem.
- Eu fiquei lá, parado, fumando no estacionamento... não queria que ela chegasse, mas ela chegou, não sorriu. Eu também não. Ela estacionou e conversou de longe... eu fiz o teste e não me aproximei... ela parou, desconcertada... durou uns duzentos anos. Ela se aproximou; foi a maior distância que um ser humano já cruzou a pé. 10000 km; vinte passos. Ela parou. Perto. Muito perto. Não ofereceu o rosto ao beijo, não sorriu, apenas esperou. Eu não sorri, esperei apenas. Fiquei ali parado... meu mundinho prestes a ruir. Compreendi, então... Aproximou-se, beijou-me o rosto como Judas, eu me voltei. Sumi. Ambos sabíamos. Nunca mais a vi. Nunca mais a quis ver.
- Eu sinto muito... – começo a me desculpar.
Aproximo meu braço de seus ombros, ele se esquiva e senta-se no chão com as pernas cruzadas. Seu gemido parece um uivo. Ele é o último ser humano no jardim de estátuas.
- Não sente não. Só eu sinto. Só eu. Desde aquele dia... veja, eu queria a morte. Eu a busquei de várias formas e quase a encontrei... inclusive aqui.
- Deixa pra lá...
- Talvez agora eu a tenha achado...
Mais silêncio pesado, lúgubre. Preciso quebrá-lo, mesmo que com algo idiota.
- Como você faz o porquinho flambe?
Ele ergue os olhos, agradecido. Sorri amargo.
- É muito simples, você corta o porco em cubos grandes, tempera com sal, limão, pimenta calabresa, alho e ervas, leva ao fogo com pouco óleo só para não grudar. Quando estiver adiantado, junte tomates em cubinhos e flambe.
- Só?
- É... o segredo está em flambar com vodka, fica mais suave.
- Vodka, é? Legal... Ei! Cadê minha vodka?!?
- Você não precisa dela.
- Você acabou com minha vodka?!?
- Tinha pouco...
- Merda!
Pego a bolsa e vou saindo. Ele tenta me segurar, eu me esquivo. Preciso dela. Ele me segue, eu corro em direção às escadas. Raul está subindo. Ele fecha a cara ao me ver pronta a sair.
- Onde você vai? Pergunta.
- Esse tonto acabou com minha vodka!
- E daí?
- Daí que vou comprar mais.
- Não no meu bar!
- Então traz para mim!
- Você não precisa dela.
- O que é vocês dois? Complô? Viraram irmãs de misericórdia?
- Não importa – e para o novilho – leva ela para o quarto.
- Não, eu quero a minha vodka! Percebo que estou gritando
– Leva ela, garoto!!!
Ele me segura firme, eu me debato. Raul fala baixo e grave:
- Eu não ralei meus colhões para você se expor assim. Lá embaixo está cheio e se você sair, não volta mais.
O horror de sua afirmação me acalma na hora. Ele acrescenta:
- Quando eu fechar o estabelecimento, te trago uma garrafa... duas até, mas vai com ele.
Eu me volto encaro meu novilho. Ele está atônito. Ofereço os punhos como que para serem algemados. Suas mãos me conduzem pelo corredor escuro de volta ao quarto. Uma garrafa se parte em algum lugar lá embaixo. Que desperdício! Eu queria ao menos um gole, mesmo que tivesse de sugar de cacos de vidro. Eu sorrio convidativamente.
- Você não quer descer e me comprar uma bebida? A gente pode, sei lá, se divertir um pouco depois...
- Não, não antes da gente terminar nossa conversa.
- Veado!
- Não, obrigado.
- Quando eu terminar você me dá um trago?
- Pode ser.
- Okay, temos um acordo.
- Eu disse: “pode ser”
- Problema seu, eu quero o trago!!!
- Ta bom; termina e a gente vê isso.
- Me dá um cigarro.
Estendo a mão. Ele tira um do maço e me entrega. Eu o coloco nos lábios e aceno as sobrancelhas. Ele tira o isqueiro do bolso e acende. Eu me debruço e, bem puta, do jeito que gosto, mostro meus peitos demoradamente antes da brasa do cigarro me dizer que é o bastante. Eu rio e me recosto na parede. Ele acende um careta e dá uma longa tragada. Fecha os olhos para saborear. Enquanto isso, a bolsa... onde está... hmmm... aqui! Destampo o frasco e tomo um bom gole... É... como perfume é uma droga, mas como drinque ajuda. Desce queimando.
- Isso presta? – Ele  tem um esgar de nojo nos lábios.
- Serve.
- Como uma foda?
- Quê?! – Voz embargada... a garganta cauterizada.
- Aquela uma comigo...
- Ah, cara, desencana... o que você quer? Um maldito prêmio de  maldita “trepada do ano”? Foi bom! Perfume é diferente, se for vagabundo o bastante dá até barato.
Ele me olha estranho. Eu me sinto suja. Tampo o frasco e o escondo na bolsa. Ainda assim, isso não ajuda a sensação a passar. Não sei onde colocar as mãos. Cruzo os braços... sinto-me melhor assim. Ataco:
- O que você queria?
- Nada.
- Quer que eu termine a história?
- Quero, mas antes me diga uma coisa...
- O quê?
- De quem você e o Raul estão com medo. Não é da polícia.
- Claro que não!
- Então...?
- Eu chego lá.
NOK!
NOK!
NOK!
- Atende, novilho! Sussurro. Ele se dirige, cauteloso, à porta, entreabre e ouve o rugido baixo de Raul:
- Sou eu, abre! Há urgência em sua voz. O novilho me olha. Acha que se perder essa oportunidade nunca mais vai ouvir o fim da história. Talvez ele tenha razão. Eu arremato pare ele antes que o Raul arrombe a porta:
- Enfim, eu aceitei, mas as coisas não eram bem como ele falou e não saíram bem como o planejado. Eu puxei uns anos, meu coroa saiu de boa, mas teve gente no meio da história que não esqueceu.
- É, ele comenta – a virtude do perdão anda escassa. Ele abre a porta e comenta sorridente – Você tem de mandar revisar essas fechaduras, Raul.
- Vai à merda. Raul emenda, seco – arruma suas coisas, vocês vão embora.
Ele traz consigo uma bolsa de couro cru que parece estar pesada, cruza o quarto e a deposita sobre o catre.
- Aí tem umas coisinhas para adiantar o lado de vocês.
O novilho parece perplexo. Ele pode até ser corajoso, mas não é muito esperto arriscando seu pêlo por Raul e eu. Há! Arriscando o pelo por uma puta e um pederasta que ele nem sabia que existiam! Há! Há! Indignado, ele fala:
- Não saio daqui sem saber por quê ou para onde!
Raul o fulmina com os olhos.
- Não quer véu, grinalda e flor de laranjeira também?!?
Eles se entreolham, enfim Raul dá de ombros.
- É justo. Para encurtar a história, há alguns anos atrás, Carla se meteu em confusão, ela comeu um monte da banda podre, mas tem alguém que acha que não foi o bastante; que nunca será o bastante. Agora, eles resolveram liquidar a fatura. Você precisa leva-la para algum lugar que até eu desconheça; eu não tenho perfil de herói.
- Sei, e porquê eu?
- Porque você caiu de pára-quedas bem no meio do rolo e se debateu tanto que atolou até o pescoço. Na bolsa você tem um celular para eu te contactar, duas automáticas com uns pentes extra.
- Ei! Pra quê pistolas?!?
- Para que você acha? – ele ri, divertido.
- Calma lá, eu não vou me arriscar por ela!
- Não só por ela, você não ouve mesmo!
- Eu vivo dizendo isso a ele! – Interrompo.
Ambos me olham de cara feia eu facho o gesto de zíper na boca, cruzo os braços atrás das costas e olho, ainda bêbada, uma aranha no canto do teto. A aranha se aproxima de um pacotinho de teia. Uma mosca? Por alguns minutos minha atenção é tragada pelo festim obsceno da aranha.
- ...Você está nessa, filho... tanto quanto eu ou ela!
- Merda... e agora?
- Hmpf ... Como eu ia te dizendo, a bolsa tem 45 em notas de 10 e 20.
- 45?!? Nossa! Dá quase um jantar e um quarto fuleiro!
- Quarenta e cinco mil, tonto!
- De onde você tirou isso? E porquê você está fazendo isso tudo por ela? Você é legal, hein? Queria ter amigos como você!!!
- Ah, guri, cala a porra desta boca!
- É, eu vivo tendo que falar isso para ele… ele é irritante, né?
- Cala você também, Carla...
- Ih, sobrou pra mim.
- Olha, menino, vou explicar pela última vez e não interrompa! Você vai pegar essas coisas e a Carla...
- Ei!
- Calada!!! – Ele está furioso, eu faço um gesto de “não está mais aqui quem falou” – Você vai pegar as coisas, a Carla e some de vista por uns tempos; a poeira assenta; eu aviso; você volta; o que sobrar da grana é teu. Se quiser trabalho depois, eu tenho de sobra. Entendeu?
Ele acena com a cabeça.
- Isso, bom menino!
Ele mostra o dedo do meio. Acho um barato a cara que ele faz quando fica irritado.
- Ótimo, eu preciso de você com bastante raiva e focado para sair daqui. Agora, limpem esse lugar, não quero que ninguém possa dizer que teve gente hospedada aqui. Junta esta louça que eu levo lá para baixo. Isso! Quinze minutos heim? – Ele sai sorrindo.
Irrompemos em atividade frenética, ele, sério como o ministro do Superior Tribunal Federal, eu, ainda meio baqueada. A tensão queimou quase todo o meu álcool, mas não me atrevo a parar para abastecer. Com dez minutos Raul volta, o mocó está um brinco. Ele olha em volta, resmunga, em sinal de aprovação, limpa a garganta e diz:
- Você já usou uma automática?
- Já.
- Novilhoooo! Que surpresa! – Debocho.
- Quartel não conta, heim? – Raul.
- Não foi só lá.
- Tá bom. A gente vai descer, na saída de serviço tem dois deles. Não são lá grande coisa, mas você também não é. E eles, afinal, são dois.
- Tá e o que eu faço?
- Eu vou sair com o lixo, você vem atrás e “faz” eles antes que eles te “façam” e a mim.
O novilho respira fundo. Vem até o catre e abre a bolsa. Tira as duas de lá: uma Beretta e uma Colt, as duas pintadas de preto fosco... foram pintadas com spray... o resultado é meio tosco mas parece eficiente, não refletem luz alguma e ainda têm um quê de arma de brinquedo. Ele as sopesa e, uma de cada vez, testa o aparelho de pontaria; trava; destrava; libera o pente, puxa o carro, ejetando a bala da agulha; tira uma a uma as balas dos pentes, examina cada uma, da ponta à espoleta e as recoloca com suavidade e firmeza. Os olhos dele brilham. Ele fecha os olhos um instante e novamente as sopesa.
- Te amarra numa metrança, heim? – pergunto.
- Hmmm...é!
Ele olha para Raul e pergunta:
- Não é mais fácil encobrir a sujeira usando um revólver?
- Eu não posso arriscar...
- E essa balas de ponta oca?
- Precaução também.
- Eu não gosto disso.
- Nem eu.
- Ah, tem isso. – Raul tira chaves do bolso e as oferece. O novilho sacode a cabeça.
- Eu não sei dirigir.
- Como assim, “não sabe dirijir”?!? – Ele macaqueia a cara do novilho.
- Tsc... Nunca aprendi... Muito complicado... – Ele parece satisfeito ao falar.
- Você sabe usar o trabuco mas não sabe dirigir?!?
- Eu não sou obrigado a saber tudo!
- E agora?
- Eu dirijo! – estendo a mão bamboleante pedindo silenciosamente a chave.
Ninguém responde. Raul me estende as chaves e acrescenta:
- Desçam a rua, dobrem à direita, três quadras à frente, Gol branco, em frente ao Lundy’s, é “esquentado”.
- Só não vá nos matar. – Diz o novilho. – Eu não respondo.
- Outra coisa, dá fim nestas armas... LONGE DAQUI...
- Tá.
- Tem outra na bolsa.
O novilho assente e imediatamente volta aos detalhes técnicos:
- Uma ... tem mais gente na campana?
- Lá na frente. Mas tem de ser hoje, o barzinho heavy metal aí do lado está dando show. A rua está lotada. – Ele ri. – As vantagens de ter vizinhos barulhentos.
- Show? Como a gente não ouve? Ah, claro... isolamento acústico... Queria ter o teu orçamento! De onde você tira para tudo isso?
- Não é da tua conta!
Silêncio.
O Novilho tira a parka e a camiseta e me manda segurar, eu pergunto com os olhos, ele responde:
- Manchas de sangue atraem a atenção.
Ou o Novilho leu romances policiais de mais ou talvez... Não! Romances de mais! Ele destrava as duas, a cara está séria. Ele está concentrado e calmo. Maldita calma! A dele! Nós todos nos olhamos e, como se combinando, Raul destrava a porta e sai; o novilho segue-o, peito nu, tatuagens se destacando da pele morena e eu pego a bolsa, as roupas dele e vou atrás, com o corpo todo arrepiado. Posso sentir a eletricidade estática crepitando o ar a nosso redor. Descemos as escadas em silêncio, passamos por um longo corredor e estamos no escuro e vazio salão do bar. É estranho ver este lugar vazio. Bares não foram feitos para ficarem vazios; é uma heresia. Contornamos o balcão; nenhum deles olha para trás. Estico os braços e apanho duas garrafas atrás do balcão. Dou sorte, uma delas é vodka... Absolut... Hmmm, bom! Abro a bolsa e acomodo-a lá, ajeito uns pacotes e acomodo a segunda... Whiskey 21 anos. Assim que fecho o zíper ouço um “psiu”. Apresso o passo e me junto a eles. Raul está terminando de amarrar um saco preto no tambor de lixo abre uma base com rodízios. O Novilho me olha muito sério e põe o cano da Beretta sobre os lábios. O olhar dele é duro, o rosto, impassível.
Raul nos encara com aquele rosto de lápide. Acena a cabeça para o Novilho em uma pergunta. O Novilho responde da mesma maneira e junta suas mãos, empulhando as pistolas, aos ombros; pose de fime americano. Raul destranca a porta de metal e empurra o tambor de lixo, abrindo-a a barulheira heavy metal torna-se audível. Alguém grita, em inglês, algo sobre uma peituda violenta; o Novilho chega-se ao batente, fora dos olhares de fora. Raul sai. Olha para os lados e sorri.
- Oi meninos. Querem me ajudar aqui?
- Nem, hein, tio!
A voz é de moleque. O Novilho leva ambos os gatilhos até o fim do descanso e se vira de frente para a parede, em seguida, se agacha e começa a oscilar de um lado para o outro. Só faltava esse traste desmaiar!
- Tem certeza? “Deus ajuda quem os outros ajuda”! Dois risos ecoam.
- Ê, tio? É: “quem cedo ma...”
Não conclui a frase, corta-a, surpreso: o Novilho se solta de lado, caindo deitado no chão, às costas do Raul, com os braços estendidos em direção às vozes. Ao impacto com o chão, as duas automáticas cospem de novo e mais uma vez. A barulheira é infernal! Meus ouvidos estão zunindo! Eu olho para eles. O Novilho está berrando comigo, nas não consigo entender. Ele arranca alguma coisa das minhas mãos e começa a vestir a camiseta...
- Ah, a camiseta... – falo abestalhada. Ele puxa outra coisa e veste. Por cima, vai colocando a parca.
Raul está caindo no chão. Há sangue. Eu me ajoelho a seu lado. Alguém está gritando “Raul! Raul!”...sou  eu. Ele tem o rosto ensangüentado e está falando alguma coisa. Alguém me puxa pelos ombros e me esbofeteia...
- Pára de gritar! – Ele diz, ou melhor, ele move os lábios dizendo. – Ele tá bem!
Ele me esbofeteia de novo e então começo a ouvir de novo... A barulheira do bar ao lado está mais alta. Olho para o lado, é o cotovelo do beco. Tem dois caras no chão. Muito, muito sangue. Os dois estão bem vestidos,ou estavam até agora há pouco. Um deles ainda se move. Olho em volta. Raul se levantou ele tem sangue escorrendo pela barba.
- Foi só de raspão! – grita acima da música e faz mímica.
Olhamos uns para os outros.
- Vão!!! – Raul nos empurra.
O Novilho me puxa e me grita ao ouvido:
- Eu vou na frente... você vem atrás... não desgruda! – Confirmo com a cabeça.
Dirigimo-nos apressadamente à entrada do beco. Ele é engolido pela multidão, logo eu também sou tragada. Sigo-o por seu couro cabeludo, bem acima dos outros. A multidão é uma orgia de odores, suor azedo, cerveja, perfumes baratos, falta de higiene. Dezenas de mãos me apalparam. Algumas tentam me segurar, nada que alguns socos nas partes baixas não resolveram. A multidão fica menos densa à medida que nos aproximamos da esquina. Lá se vai o Novilho. As garrafas na bolsa tilintam. Reduzo o passo pra arrumar os pacotes entres elas para não perder seu conteúdo.
Dobro a esquina ocupada nesta tarefa. O Novilho está parado conversando com alguém. Pego o final da frase de seu interlocutor:
- ... está a piranha?
- Falando de mim? – Digo.
Surpreso ele se volta. O Novilho afasta a arma do homem. A nuca e pescoço do outro explodem em um chafariz de sangue e álcool. Só depois percebo que o golpeei com a garrafa errada. Adeus, Absolut!
O cara é durão, ele se debate para livrar a arma do aperto do Novilho. O Novilho lentamente levanta a mão dele, com arma e tudo, para perto de seu dono. Ele grita para mim:
- Vai !!! – Eu corro. Uma, duas quadras...
Um tiro! Dois! Novilho! Espero que você esteja bem. Eu sigo em frente. Como é mesmo o nome? Landy? Ah... Lundy’s! Sim, uma aglomeração em frente a ele, luzes na madrugada. Gol branco... Hmmm...são tantos...escolho um testo o controle de alarme... dá sinal em outro, alguns metros à frente, cercado por um grupinho etilicamente sorridente. Sou agraciada com uma salva de assovios e cantadas de baixo calão. Entro, aciono o motor, sorrio para eles e ergo lhes o dedo médio. Saio devagar. Onde está você Novilho? Esteja bem. Encontro-o andando calmamente, suado, duas quadras antes da aglomeração em torno do que ele... me informa ser o corpo do atacante, O Filho da Puta!!! Mais algumas quadras e ele me diz para dar umas voltas para despistar. Rodamos e rodamos e rodamos... horas, talvez... ninguém nos segue. Paramos à margem do parque no coração da cidade. Puxo o freio de mão e o beijo. Boca macia, gostosa, Novilho.
- E agora? – Pergunto.
- Vamos para minha casa.
- Perigosa?
- Talvez um pouco.
- E depois?
- Ainda não sei... Sul talvez...
- Bom...
- Você acha que acabou?
- Nem, hein! Mal começou...
Silenciamos.
- Vamos?
- Espera... tem uma coisa que faz tempo que quero ver.
Como que esperando apenas pela autorização dele, a claridade por entre os prédios dá lugar aos raios brilhantes de um só vermelho escuro... Sol de sangue, feio e roto, mas um sol.
- É a poluição atmosférica que produz este fenômeno, mas não dá para deixar de admitir... – Ele explica como se apresentando uma sua propriedade... adoro quando ele faz isso
- É lindo! – Exclamo.
- É ... – concorda.
Silêncio.
- Vamos, pequena, ainda temos de dar um fim a umas coisas antes de chegarmos em casa.
Súbito, obedecendo a um impulso de felicidade pela recém adquirida liberdade, eu tomo seu rosto entre as mãos e o beijo rápido. Mordo seu lábio inferior. Solto, giro novamente a chave na ignição e o motor ronrona. Engato a primeira e piso no acelerador. Os pneus cantam. Ligo o rádio e uma música horripilante inunda o ambiente. É bom estar viva!

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