quinta-feira, 12 de março de 2009

TENEBRAS - Epílogo capítulo II

Elisa está exausta, hoje eles estiveram inspirados. Cantadas e convites da mais baixa extração pipocaram em seus ouvidos. Um velho fazendeiro chegara a abrir seu talão de cheques para acompanhar uma proposta ultrajante. Apesar do desejo intenso de sugerir para qual parente próxima ele deveria fazer sua oferta, Elisa teve de se contentar em dizer que ele se enganara e prometer que enviaria o book do hotel para sua suíte. No entanto, o tal fazendeiro batia recordes de inconveniência; dissera que era ela e nenhuma outra a quem ele queria e que nunca mulher alguma recusara seu dinheiro. já em sua última reserva de paciência, polidamente informou-o que se caso não percebera, não era este tipo de mulher (acrescentou um esgar de repugnância ao dizer “este tipo de mulher”) e que um processo por assédio sexual não conviria para um homem tão (ARGH!) distinto. Isto bastou para lhe assegurar alguns minutos de tranquilidade, até que outro tivesse idéias obscuras a seu respeito. Hmpf...dia muito lucrativo se ela fosse uma garota de programa. Como não o é, somente mais um daqueles dias que se quer riscar do calendário, esquecer que sequer existira.
A rua, como sempre, está escura. A copa fechada das árvores forma uma abóbada, transformando a luz mortiça das lâmpadas de vapor de mercúrio em uma bruxuleante renda de luz amarelo-esverdeada, dando um aspecto feérico à rua Santa Joaquina de Vedruna. Poderia seguir pela Avenida Dr. Luís Teixeira Mendes, que corre paralela, como o faz costumeiramente, mas seus pés doem muito, e quando chegasse à altura da Associação Atlética do Banco do Brasil, teria uma quadra a mais em sua subida já penosa. “Droga – ela pensa – amanhã trarei um par de sandálias rasteirinhas para ir embora. Este salto vai me matar!” Um morcego passa raspando por seu rosto e ela dá um gritinho abafado, seu coração dispara. Uma coruja pia assustadoramente Ela se lembra que já é muito tarde, há muitos terrenos baldios, muitas mansõezinhas e muitas casas vazias ou abandonadas na Santa Joaquina. . “Nunca mais venho por aqui. Deveria ter pego um moto táxi, hoje falta só mais algumas quadras. Nunca tive medo daqui, só vou pela Teixeira Mendes por precaução.” Mas ela está muito tensa hoje, todos do hotel pareciam olhá-la de modo diferente hoje. “Será que vão me dispensar?” Não era nada comum que a gerência a tratasse de forma tão distante, até nutriam uma velada predileção por Elisa. Está profundamente imersa em seus pensamentos até que é chamada à realidade por uma pedra, uma topada, um pé que vira, um salto que se quebra, um joelho que se rala. A dor é lancinante, só superada pelo nó no estômago quando ela ouve um par de passos atrás de si. Ela se vira e nada, só as sombras dos trocos frondosos e da copa espessa, um rasgo de luz na rua meio esburacada, um Audi estacionado, um gato que cruza a rua. “Deve ter sido o eco e nada mais. E... engraçado, não me lembro de haver passado por aquele Audi... tenho de prestar mais atenção nas coisas, qualquer carro tudo bem, mas um Audi?” Sua segunda mente ainda cisma “Mas um Audi?” Ela se levanta, molha o dedo em saliva e limpa o sangue do joelho. “Hmmm... Melhor eu andar mais devagar e calçada, mesmo que com uma sandália de salto quebrado, que sair descalça por aí e lanhar todo o pé.” E lá se foi, com a tornozeleira dourada a oscilar na curva do pezinho dolorido. Poc...pop...poc...pop... “Se eles me forem dispensar, vão me chamar e oferecer os dois períodos de férias que tenho vencidos. Isso e mais os trinta dias de aviso prévio, me darão três meses para procurar trabalho.” Falta um pouco ainda para chegar à Carlos Borges. Depois, uma quadra de subida, a praça do Colégio Byington Jr. com seus eucaliptos imensos e dividida ao meio pela rua, mais duas quadras e voilá, banho quente, curativo no joelho, leite morno, óleo de cânfora nas pernas e cama macia. O amanhã, só amanhã. Sem aviso, um buraco e o salto vai definitivamente embora. O “poc...poc...poc” continua. Elisa se vira rapidamente, parece uma gatinha acuada com o pelo eriçado. “Quem é você?!?” Por um instante ela pensa ter visto duas brasinhas gêmeas onde seriam os olhos daquela silhueta feminina que se aproxima e que fala com uma inflexão muito polida:
- Desculpe se te assustei, querida. Está muito escuro aqui. Posso te fazer companhia?
O tom plácido tranquiliza a jovem, ela mede de cima abaixo sua companhia, uma morena muito alta e bonita, com os cabelos claros. Elisa murmura um “ã-hã, espera aí” e termina de retirar suas sandálias. “É, vou precisar da cânfora nos pés também. Ah! Dane-se!”
- Indo para casa?
- Ã-hã.
Muito bonita, perfumada, elegante. Não deveria andar assim a essas horas.
- Ah, minha querida, eu sei me defender. Mas muito obrigada pela preocupação.
Como ela fez isso?!?! Ei!!! Ela é aquela mulher do...
- Exatamente. Agora, shhhhhh... você já falou demais.
Elisa tenta gritar mas sua voz não sai. Tenta correr, mas seu tornozelo dói horrivelmente. Medida desesperada, resolve se virar e reagir, mas os olhos dela parecem duas brasas, deixando-a lenta, subjugando-a... Um Audi A-8 estaciona, dois homens saltam carregando em suas mãos o que parecem ser rolos de corda. Os olhos de Elisa se fecham, como se ela estivesse adormecendo.
Nas horas que se seguem, Elisa desejou ter ido pela Teixeira Mendes; desejou haver tomado um táxi ou moto táxi; desejou ardentemente haver aceito o convite obsceno do fazendeiro nojento, pois teria sido deixada na porta de casa. Por fim, desejou nunca haver nascido. Seu último pensamento antes de perder os sentidos pela última vez nesta noite (e para sempre) foi: “ como ela fez aquilo?”
Amanhece. O sol inunda com sua luz uma cidade verde, bela e calma. A classe mais afortunada que mora nas regiões centrais da cidade tem uma surpresa ao divisar com seu mais famoso cartão postal. “Um novo enfeite!” dirão uns. “Mas o Natal ainda está tão longe...” completarão outros. Quem tomar um binóculo ou outro instrumento ótico vai perceber em primeira mão que preso aos braços da cruz que encima a Catedral Basílica Menor de Nossa Senhora da Glória, há um casulo inerte e sangrento confeccionado com arame farpado em um arabesco intrincado cujo conteúdo só pode ser identificado porque foi deixado de fora um par de pezinhos lanhados por caminhar no asfalto e adornados por uma graciosa tornozeleira de onde pende uma cruzinha dourada. Banhados em sangue.

Nenhum comentário: