quinta-feira, 12 de março de 2009

TENEBRAS - Capítulo I

CAPÍTULO I

Eu respiro fundo e penso no que estou prestes a fazer. Confiro meus itens cerimoniais e me pergunto se terei oportunidade de fazer exatamente o que devo. Um coro chama pelo condenado. Mentalmente reviso todas as palavras que serão necessárias hoje. A armadilha deve ser perfeita ou não haverá uma segunda chance.
A Ordem providenciou um belo séquito de auxiliares. Claro que eles pretendem muito mais que me assessorar com esta gentileza, eles acreditam que vão usurpar meu espólio. Nada de mais, mesmo que eu estivesse sozinho, duas Iniciadas, três acólitas, uma postulante e um bando de neófitas cheirando ainda a pequenas orgias com suas turmas da faculdade. Eu deveria me sentir ultrajado, mas dadas as condições, quanto pior, melhor. O que estou fazendo já é perigoso sem ter espiões talentosos por perto; aliás, perigoso é apelido.
Meus projetos adquiriram velocidade quando, em um golpe inacreditável de sorte, caiu-me em mãos um volume já antigo de procedência hispânica. O livro até que não era ruim, mas o mais importante era uma crônica estranha (possivelmente inspirada no leitmotiv de Goethe) sobre um homem ganancioso que escravizara um demônio valendo-se de um ritual bastante interessante. Bem, imediatamente reconheci o ritual como sendo de Cagliostro. Este sim era um verdadeiro achado! O cronista escrevera ficção possível bem ao estilo de Lovecraft e ainda usara invocações verdadeiras! As fórmulas lidam com os mais altos círculos dos caídos de uma maneira que dispersaria toda eventual retaliação (os Caídos são muito vingativos, como você bem sabe), bastaria que providenciasse uma pequena vítima que me doasse sua bílis (o livro recomendava uma prostituta, mas tenho classe, foi uma modelo de Quinta; quase dá no mesmo... quase).
Daí para frente foi mais uma questão de elaborar alguns sistemas de defesa no rito original, encontrar os artefatos adequados selecionar a criatura adequada. Claro que meus preparativos não passaram despercebidos de meus priores na Ordem. Fui convocado para partilhar minhas atividades. Naturalmente não entrei nos detalhes mais importantes, mas mesmo aqueles de inteligência escassa perceberam a vantagem de se ter sob controle algo deste porte. Não poderia ter escolhido melhor... Anathmik é um dos tenentes do próprio Samiaza, e encontra-se circulando por aí desde a Suméria (é, aquela dos livros de História); entre os séculos XIII e XVIII, divertiu-se um bocado em muitos conventos de França e Alemanha. Que conste que na classificação de Theodorus de Provence, famoso cronista e demonologista dominicano, ocupa o nível oito... detalhe: a escala vai até doze.
As assistentes já se revezam para cobrir a longa vigília que temos pela frente. Algumas que estão em repouso cochicham assustadas. Acho que nenhuma delas pensou em ir tão longe em sua dedicação à ars magica e provavelmente nunca mais irão, as pobrezinhas... A mais velha delas me acena pedindo para me falar em particular. Farejo seu medo.
- Senhor, já estamos exaustas. Tanto tempo de jejum e atividade vai matar minhas pupilas. Será que ele vem? Não é melhor adiarmos a enfrentarmos uma criatura dessas debilitadas? E ademais, Agnes...
- Agnes é problema meu! Ela está pronta e vocês também, se não fizermos hoje, não funcionará mais com esta entidade, e não vou perder um demônio classe oito porque vocês estão com sono.
- Mas senhor...
- Sóror Verônica, se não quiserem ficar podem ir. Eu faço meu trabalho sozinho. Frater Eustáquio é um homem razoável e vai entender.
A menção a seu desprezível superior fez a sólida ruiva de curvas generosas e olhos duros vacilar, eu podia ouvir as engrenagens ágeis do condicionamento da Iniciada trabalhando: “(...) a meu superior e a meu senhor e a quem meu mestre designar como comandante serei de inteira lealdade, não medindo esforços para adiantar-me a suas necessidades, satisfazendo-as mesmo que a custo de minha alma imortal.” E Adab, a memória persistente varreu suas dúvidas e o medo de sua mente, deixando apenas a muda certeza de que nada no mundo fa-las-ia saírem com vida daquela chácara alugada a um pequeno proprietário, pagas em espécie e sem contrato.
- A meu senhor serei fiel com todo o meu corpo, com todo o meu coração e com toda a minha alma.
Era a resposta ritual a um chamamento de auto sacrifício. Então nossa freirinha desviada era mais inteligente do que presumi. Lastimei o que a ela estaria reservado. Respondi com a solenidade de que ela precisava neste momento de compreensão.
- Assim o dragão mais apto abre seu peito de sustenta com seu coração aos que dele necessitam, salvando, desta forma, o ninho.
Era a confirmação que ela temia mas também a última homenagem ou continência a um soldado que é destacado a uma missão suicida. Seus joelhos vacilaram por um instante, seus rosto transpareceu todo o cansaço e tristeza de uma vida cheia de tribulações e de ambições, eu podia ver em seus olhos que tudo ia sendo tragado em um vórtice, dando lugar à determinação que era seu verdadeiro estofo.
- Adeus, Alfie. Te vejo de novo no Tártaro.
- Adeus, Verinha. Queime e chore mas não grite.
Súbito todos os nervos de meu jardim espinal alertam “proximidade”. O sedutor está próximo. Rapidamente conjuro um feitiço sobre mim e uma máscara recobre minha aura, dando-lhe a aparência de uma mulher.
- Oh grande Anathmik, ouça nosso chamado e receba nosso sacrifício. Esteja conosco e ceifa tua refeição. – Quem será que escreve estes cânticos? São sempre tão ridículos.
Quando o cheiro da virgem especialmente preparada para ele torna-se forte demais para ignorar, ele está entre nós e o ar almiscarado cristaliza uma atmosfera ao redor de seu corpo torneado. Uma das mulheres do coro desmaia... Inferno! Não é tão grande assim... é só colossal. Não é grande coisa, só quarenta ou cinquenta centímetros de carne demoníaca dura como madeira e um par de acessórios aberrantemente grandes. Okay... é grande coisa sim, e ele está extremamente excitado. Se ele não estiver bem focado pela preparação mágicka exaustiva a que nossa garotinha-isca foi submetida, estamos todos perdidos, e acredite em mim, ser violado até a morte por um íncubo não está em meus planos pelos próximos dois milênios. Não é uma morte nada bonita: todos aqueles rasgos e cortes e perda de sangue e as fraturas e concussões e mordidas fazem a Gestapo parecer um bando de pestinhas de jardim da infância. Hmmm... agora eu devo me manter focado, meus pensamentos não podem me trair, ele deve pensar que este é só um Sabá, um bando de moças respeitáveis que quer alguma diversão sexual com o sobrenatural.
O demônio estava adorando tudo aquilo, a raiz forte e o gengibre o deixavam louco, ele rosnava e salivava e sua ereção latejava. Ele a olhou como se fosse a primeira vez que um caído via uma humana.
Nossa pequena isca fora preparada em um ritual que tomara todas as noites de uma lua nova (tal e qual descrevera Cagliostro), fora açoitada em seus genitais de forma a deixá-los mais sensíveis; fora imersa e banhada com mel, rosas e vinho com beladona; dançara sob o efeito de ervas incomuns ministradas em uma beberagem olorosa de anis e hidromel. A parte mais difícil foi convencê-la a deixar-se sodomizar por uma sacerdotisa munida do bastão de hematita que (assim assegura o manuscrito) se confeccionado estritamente do modo como é descrito, impede que o sedutor tenha olhos de ganância e escolha mais uma vítima para o sacrifício.
Ele a toca como se pudesse parti-la (e bem sei que poderia), nos olha de soslaio, desconfiado e súbito fixa o olhar penetrante em mim. Percebo através da audição que a surpresa me calou e mais que depressa, retomo a litania do rito. Nem ele poderia romper o véu do encantamento e me ver em minha forma verdadeira, nem ele poderia! Mas não, só estaria pensando em quem pegaria após a imolação. Vai sonhando, monstrão, vai sonhando... Ele já não agüenta mais, sorve a pasta com que fora untado o corpo de Agnes e poder-se-ia até dizer que estalava a língua, satisfeito. Antes que nos acostumássemos com sua presença, acercou-se da pequena, encostou sua glande descomunal em sua vulva e de um só fôlego, arremeteu-se para dentro com tal intensidade que esta (mesmo dopada) respondeu com um gutural medonho, compassando e repetindo a cada nova invasão – ele não estava para brincadeiras. O suplício durou horas, eu já perdera a noção exata do tempo. A pobre Agnes, depois de algum tempo e passado o efeito das sedativos, não mais gritava, alternava momentos de apatia nos braços da abominação que se agitava por sobre ela e sobre o altar já ensanguentado (alheia a tudo, quase que vendo sua realidade em terceira pessoa) , com momentos em que seu olhar ia e vinha, suplicante, parando ora aqui, ora ali, ora me procurava, seus punhos se crispavam e seu olhar voltava a fitar o vazio. Isto foi antes do orgasmo – se é que assim pode ser chamado aquele amplexo bestial que reverberava quase que como uma sirene de alarme antiaéreo. A jovem começou primeiro. Era assustador. Ela se contorcia em pânico (Claro que ela sabia que os espasmos e contrações iriam dilacerar o que restava de seus órgãos internos e a hemorragia completaria o trabalho de tirar a vida daquele corpinho frágil. Claro que ela sabia, sempre soube.). O sedutor começou a dar sinais de que também gozaria, de forma que minha camuflagem já era desnecessária, teria pelo menos alguns minutos de alheamento do incubo, e nestes preciosos minutos e só neles, eu iria recitar o encantamento que, uma vez completado, o colocaria totalmente a meu serviço. Rapidamente, retirei de sob meu hábito marrom uma lâmina de ferro negro, uma pequena relíquia incrustada de ônix e coberta de caracteres indecifráveis. Entoando meu perigoso encantamento, rompi o círculo de proteção que os isolava do mundo exterior (e de nós) e, pé ante pé, me aproximei da massa orgástica e obscena que se contorcia no altar. Segurei seus testículos monstruosos e com um movimento firme e preciso, seccionei-os na base da bolsa escrotal.
Parecia que haviam ateado fogo ao mundo, o urro da criatura quase me fez largar tudo e fugir (as sacerdotisas tentaram fazê-lo e o teriam conseguido se eu não houvesse previamente lacrado todas as saídas), mas eu tinha de ser rápido. O íncubo castrado caíra desacordado a meus pés. Recitei apressadamente uma série de versos retirados da Clavicula Salominis e alterados por Cagliostro para esta finalidade específica e, quando a criatura se levantou, o furioso demônio era uma belíssima súcubo que, ato contínuo, prostrou-se-me aos pés e disse:
- Sou Anathelle e sirvo ao senhor de meus testículos. Ordene e será.
- Anathelle...hmmm. Não acha que temos testemunhas demais aqui? Providencie para que elas estejam mais mortas que a pobre Agnes.
- Assim será, meu senhor.
Será que vi um lampejo de sagacidade nos olhos dela? Não sei bem, mas quando abandonávamos aquele lugar, congratulei-me por ser o único possuidor vivo de um escravo tão poderoso. Com ele poderia dominar um país ou, talvez, uma ordem iniciática.


Epílogo

Chamada de um jornal local:
“A polícia fez uma descoberta macabra neste fim de semana em uma chácara da região: dezenove mulheres entre vinte e dois e quarenta e cinco anos foram horrivelmente mutiladas e mortas. Há apenas uma sobrevivente do que parece ser a pior chacina que já aconteceu em Pontal: uma garota de dezoito anos aparentes e que foi barbaramente violentada encontra-se no CTI do Hospital Santa Úrsula. Os Investigadores dizem haver evidências que apontem para um ritual de magia negra. Mais detalhes no jornal regional.


(Comecei este romance há uns oito anos... os esforços de pesquisa se tornaram tão volumosos que tive de interrompê-lo para não prejudicar meus estudos. O manuscrito permanece inacabado até o momento. C.R.S.)

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