quinta-feira, 12 de março de 2009

TENEBRAS - Capítulo II

CAPÍTULO II
Quarta-feira cinzenta, linda. Chuva fina, friozinho, um atípico dia de outono nestas latitudes, um presente de aniversário adiantado. Dia ótimo para se trabalhar em casa. Ligo para Dona Marta, a secretária e peço que desmarque todos os compromissos. Oriento-a para que tire o dia de folga e vá fazer umas comprinhas. Ela simplesmente adora, diz que sou um santo, pergunta se ainda tenho aquele “sobretudo preto lindo” e ante a afirmativa, promete que vai tricotar uma echarpe para mim. Ha ha ha. Que lindo. Quando penso em como fora difícil condicionar uma adulta, ainda que muito promissora, sem o conhecimento da Ordem; sem confinamento e nem as condições mais elementares; em face ao que hoje ela representa para mim, digo a mim mesmo que valeu muito à pena. Foram anos de laboriosa lapidação, mas ela convertera-se em minha mais eficiente colaboradora. Naturalmente houvera um ponto importante a favor do sucesso absoluto de seu treinamento: fora eu quem a retirara das ruas e dos pequenos programas mal remunerados e perigosos. Não quisera nada em troca, apenas me parecera interessante aproveitar aquele brilho de inteligência que possui. Por tudo que já passáramos, Marta é de uma fidelidade canina e carinho quase sufocante para comigo.
Antes que desligasse, informou-me que havia uma mensageira esperando por mim. Ela marcara o “uma mensageira” de uma maneira muito peculiar. Deve ser algo importante para eles mandarem um “correio de voz”. Okay, pedi a Marta que chamasse um táxi e a encaminhasse para minha casa, e enviasse junto alguns processos para análise e meu pequeno gravador, acondicionado em um pacote não identificável. É sempre bom gravar estes comunicados, às vezes são muito longos e de toda forma, uma gravação sempre é uma prova material.
Desliguei, tomei um banho e antes que tivesse terminado de passar meu café, a mensageira estava à minha porta. Fechei o quimono e convidei-a a entrar. Era uma mulata muito bonita, se tivesse dezoito anos seria muito. Valéria, como se apresentou, aparenta haver saído recentemente dos programas de iniciação e formação. Ela entra sem se incomodar com minha seminudez, entrega-me o pacote enviado por Marta, aceita uma generosa caneca de café sem malte que lhe ofereço, afinal, ela está a serviço, e o álcool atrapalha suas preciosas habilidades. Bebemos em silêncio, eu a estudando, ela admirando as gravuras nas paredes de meu aconchegante estúdio. Tão logo termina, depõe sua caneca de lado, levanta-se, assume a postura de vigilância amena e recita cerimoniosamente:
- Quando as línguas se confundiram e os povos se espalharam, ainda assim mantivemo-nos unidos.
- Pois à cota de malha forjada no inferno, é necessário mais que calor e pressão para ser rompida. – Respondi.
- Destarte, os grilhões que nos separam apresentam elos invisíveis que nos unem.
- Assim, ao mensageiro alado que cumpre com fidelidade sua missão, seja oferecida hospitalidade e respeito. Sê bem-vinda, esteja uma vez mais entre nós.
Cumprido o protocolo de ativação, seus olhos adquirem o brilho vítreo característico do pré-transe. Ainda uma checagem de segurança e ouvirei o que desejam que ouça.
- Mensagem para Mestre Alfredo Frater Ordo Iscarioti, da parte de Mestre Anatole. Mestre Alfredo sois vós?
- Sim.
- Qual a chave que abre todas as portas?
- Poder e glória.
Seu rosto, que até então encontrava-se neutro, adquire rapidamente uma nova configuração. Os maneirismos nada mais têm a ver com a menina delicada que há pouco partilhava da bebida quente comigo. Ela é uma mimetizadora, uma pessoa que apresentara desde a mais tenra infância a habilidade de reproduzir com relativa perfeição a linguagem corporal de outrem. Esta habilidade é preciosa em uma organização como a nossa, na qual mesmo suas comunicações mais triviais devem-se revestir de uma opacidade quase hermética. Claro, oficialmente não existimos. Um mimetizador é condicionado para utilizar seus dons sob circunstâncias específicas, ativados mediante um gatilho pós-hipnótico. Um mensageiro, quando ativado, reproduz à perfeição toda a comunicação enviada: voz, tonalidades, trejeitos, expressões corporais, subtons, e até outros pequenos tiques e idiossincrasias, enfim, tudo. E lá estava ela, com o cenho cerrado e o ar grave de Anatole, o representante da Confederação, um arquipélago de siglas que reúne desde grupos de trocadores de casais suecos até às truculentas facções da Ordem no Leste Europeu.
Vinte horas e cinquenta minutos. Uma vez mais atendo a uma convocação do conselho de Priores. Os velhotes devem estar em polvorosa com o episódio do sebo. Dirijo-me à habitual sala de reuniões do três estrelas mais antigo da cidade. Deville é seu nome e já viu dias mais opulentos, agora tem um certo charme decadente, suas tapeçarias em estilo tropical continuam horrendas mas o aspecto geral é interessante. Os velhos devem estar caducando para manter este lugar como Sinédrio. Talvez seja a semelhança gráfica: “DEVIL”, Deville... claro que seria banal demais, mas alguns Membros tornam-se muito óbvios com a chegada da velhice. Talvez os lobos estejam perdendo os dentes. E quando isto acontece, é sinal de que a matilha precisa de novos líderes. O saguão amplo é forrado com um carpete discreto, lojas de conveniência na ala direita, nada de muito sofisticado, um revendedor de artigos para surfe (numa cidade situada a seiscentos quilômetros da praia mais próxima!), uma loja de presentes com peças artísticas desiguais, algumas realmente muito bonitas e outras que só seriam compradas por pessoas de gosto duvidoso.
No balcão de mogno (herança de tempos mais generosos) duas ou três recepcionistas em uniformes que lembram os de comissárias de bordo, todas muito bonitas e com aquele arzinho afetado que as classes trabalhadoras ostentam quando sua colocação profissional permite frequentar os mesmos ambientes que os ricos. Ao fundo, uma série de relógios informa horários em vários meridianos numa tentativa de dar um ar cosmopolita ao lugar, mas é traído por todos estes malditos televisores espalhados por aqui. O ponto alto do ambiente é um belíssimo Pedro Jorge. Um samurai de bronze desembainha sua lâmina. O vento sopra com leveza esvoaçando graciosamente as faixas soltas de sua armadura. Deter-me-ei aqui por alguns minutos bebendo de suas formas, lendo com o tato suas texturas até decidir que estou suficientemente atrasado. Que os anciãos me aguardem um pouco e pelo circuito interno de segurança eles entenderão exatamente o que digo: “foda-se sua convocação, fodam-se vocês todos. Seu tempo está se esgotando.”adoraria passar horas e horas admirando este bronze, mas tenho de aviar-me. Preciso de um destes em casa. Talvez, após desferir meu golpe mas adianto-me, uma coisa de cada vez. O pequeno corredor que conduz ao elevador administrativo é ladeado pela recepção, de modo que não é possível chegar até ele sem ser abordado pelas atendentes. Sim, lá vem uma delas. Por sinal, a mais bela em atividade no momento. Nunca a vira antes. Ela me saúda com um sorriso muito plástico. Seu semblante quase transmite a hospitalidade que dela é esperada.
- Boa noite, senhor. Em que posso ser útil?
Seios firmes e saudáveis, cabeleira loura presa na nuca e caindo em pequenos caracóis por sobre os ombros (Deus, é a própria Cachinhos Dourados adulta). Eu a quero e a terei. As articulações de seus dedos são reforçadas. Em algum momento de sua vida, trabalhara como diarista. As unhas são mantidas curtas e com esmalte incolor. Ainda hoje realiza a limpeza em sua casa. Ela não suporta homens que ostentam poder, prefere sutis mas que exalem presença, como faróis. Primeiro, uma tática suave de abordagem. Neutra, somente para avaliar a resposta emocional. Tudo bem... Tom de voz suave, grave e macio, como se fosse originado no occipital, travar no rosto a expressão de concentração serena do treinamento básico. Por aproximação, será associada a um rosto despretensioso, confiável. Nos olhos, um ar ligeiramente blasé, mas não esnobe.
- Boa noite, tenho uma reunião na sala de convenções às vinte e uma horas.
O perfume é importado, caro e agradável; a maquiagem poderia ser mais discreta. Ombros retos; ela nada regularmente. Classe média baixa, solteira, relativa experiência... Sim, ela deseja tornar-se uma grande predadora e para isso torna-se uma grande pecadora. A ganância e a soberba são fortes nela, a luxúria uma ferramenta, a inveja o parâmetro de sua ambição. Esta moça teria futuro na Ordem. Talvez, depois da reunião. Mas antes, vencer a resistência. Está acostumada aos homens pavonearem-se diante dela. Está já antevendo o momento da cantada. Distanciou-se. Quer se mostrar desejável mas pouco acessível. O problema desta tática é que ela é um caminho de duas mãos. Aguarde, pequenina.
- Sim? Qual o grupo de trabalho?
Olhos firmes, ela sabe exatamente como conseguir o que quer. Dentes grandes, bonitos e muito brancos: não-fumante. Elisa... nome curto, bonito. Coluna ereta Provavelmente é a primeira geração de sua família a frequentar uma universidade. Administração? Não. Direito, ela se comunica bem e já tem a postura da profissão. Talvez esteja na metade do curso, não mais possui aquele olhar virgem dos primeiranistas, no entanto, ainda é desprovida da arrogância fria do recém-formado. Pescoço longo e convidativo. “É agora” – ela deve estar pensando – “ele VAI tentar agora”. Mas não, corro os olhos pelo lobby intencionalmente distraído. Sua auto-confiança se esvai em um momento crucial. A frustração transparece nos olhos. Muito talento, nenhum treinamento. Seus lábios carnudos e bem vermelhos estão se mexendo, há uma ponta de queixume na voz, ela está cobrando atenção. Hmmm... Carência demais, estamos quase chegando ao núcleo macio daquele monolito. Sim, um vácuo onde haveria uma figura paterna. Uma menina de sete anos não faria um moxuxo mais completo: “Papai, olha só meu dedo, tá doendo!”
- Senhor... senhor? Qual o grupo de trabalho?
- Hã? Ah sim, desculpe. Protocolos Centro-Sul.
- Qual seu nome, senhor?
A Menção ao grupo opera uma mudança significativa em seu rosto e torna seus olhos mais convidativos. Definitivamente após a reunião. Ela detesta perder. Principalmente quando acredita que há vantagem em se ganhar. Sem me tornar formal ou arrogante, distancio-me um pouco mais. É muito comum que puxemos com os olhos aquilo que queiramos (as classes menos favorecidas dizem, não sem uma certa razão: “comer com os olhos”) e agora a fome está em seus olhos. Uma sua parte se sente ultrajada... “Quem ele pensa que é? Não vai me esnobar, não pode me esnobar.” Começa a despontar a raiva, cuidado agora. Não vá pôr tudo a perder. Volto à neutralidade. “Olá estranha, meu nome é...”
- Alfredo de Aguiar e Gusmão.
Ela se desdobra em esmero para ser-me agradável. Precisa neste momento fugaz de minha aprovação. Se ela tiver mais alguns minutos de reflexão, vai parametrizar e chegará à conclusão óbvia de que este flerte não terá importância alguma para o resto de sua vida. Então ela não terá estes minutos.
- Hmmmm, deixe-me ver... Aqui está! Seu crachá, senhor... Pode tomar o elevador administrativo e ...
- O resto eu já conheço, muito obrigado.
Visto meu sorriso mais polido, uso um tom de desculpas. Seus olhos se apagam como estivesse perdendo um império. Já ia me retirando mas paro, como quem está em dúvida. Agora é o momento:
- A propósito, você conhece algum lugar interessante onde se pode tomar um bom café?
- Perdão?
Ela pára, atordoada. Completamente confusa.

- Café... – Fiz a mímica de quem leva uma xícara à boca – Sabe onde?
- Ah! O senhor já foi à Cristal? – Sorrindo
- Onde fica? – Blefe completo, sou habitué.
- Na Duque com a Novo Centro. Eles têm daquelas máquinas antigas, o café sai delas com cheiro e gosto de café de verdade.
Ela está se convidando. Ponto a favor demais: ela gosta de café. Ninguém que gosta de café é tão ruim. Após a tensão do primeiro momento, esta suavidade repentina torna as coisas mais fluidas. Agora, o momento que ela já acreditava que nunca viria:
- Hmmm... parece bom, me acompanha?
- Sinto muito, só saio às duas e trinta.
Sorri constrangida, ela realmente sente muito. Parou de me chamar de “senhor”. O sorriso se estreita por um momento, os olhos cintilam, quase uma criança na manhã de Natal.. Alternar crise e suavidade, negar o que o interlocutor deseja e dar reforço positivo quando apresenta o comportamento esperado normalmente funciona. Sua sobrancelha se alteia. Mensagem: “Mas, se estiver por aqui quando eu sair...”
- Então tomaremos café da manhã.
Sugestivo mas sem malícia, ela se encanta com a sutileza. Sorri divertida. Simula receio, somente para manter o jogo por mais alguns instantes e não parecer fácil.
- É contra as regras sair com clientes do hotel.
- Então nos encontramos lá. – Decidi – Às três?
- Hmmm... Está bem. – Sorriso lindo. Ela é encantadora.– O meu é com creme, viu?
- Okay. O meu é mais forte.
Os velhos devem estar passando mal. Antes de chegar, melhor estudar quem se encontra no Sinédrio. Se Dora estiver na sala de recreação, Davi está presente e se ele estiver presente, estou complicado. Tudo bem, terceiro andar, prendo a respiração e caminho devagar, quase na ponta dos pés. Ah, sim! Lá está ela, assistindo televisão e de costas para a porta. Ótimo! Adoro esta menina, mas ela me dá arrepios. Bem, meia-volta quietinho e direto para o elevador.
- Olá Alfie, nem ia me dar um beijo?
Oh não! Mas eu nem respirei, como a maldita bruxa faz isso?
- Seu joelho, anjinho, faz mais barulho que um caminhão! Porquê você não vai a um ortopedista? Eu conheço um bom.
Eu odeio quando ela faz isso. Me sinto tão amador quanto aquela menina da recepção. Ela vem correndo e de um salto, pula em meu colo e me dá beijinhos na bochecha. Adoro quando ela faz isso. Oh-o... bem mais do que deveria. Dora sopesa minha súbita ereção, sorri maliciosamente e diz:
- Ah, anjinho, eu também estava com saudades. – e me sapeca um selinho.
- Dorinha, eu te adoro, mas não faz mais isso, ainda me mata do coração.
- Ou de tesão, né? Como vai Agnes?
- Agnes vai bem, passou no vestibular, fez uma tatuagem e diz que quando se formar vai morar sozinha. Ah! Ela manda beijos, está com saudades.
- A lindinha. He he... Prestou para que?
- Medicina Veterinária.
- Hmmmm... safadinho, querendo cortar seus gastos, hein? Mas até ela se formar, quem vai cuidar de você?
- Gracinha! Vai ver seus enlatados na tevê e deixa eu ser esfolado pelo seu marido e os amiguinhos dele.
- Se não forem eles, quem vai te crucificar vão ser os romanos.
Gelei. Então o safado que me vendera a adaga e saíra falando... ele vai se ver comigo.
- Ôôôa! Ainda nem escapou de uma e já está querendo entrar em outra?
- Eu ODEIO quando você faz isso!!!
- É por isso que eu faço, anjinho. Com os outros não tem graça, eles ficam o tempo todo falando (faz uma careta) “adivinha o que eu estou pensando?”, blargh!
- É, eu sei. Mas não me chama mais de anjinho, tá?
- Tá bom, Demonão Gandão! Melhorou?
- Melhorou, obrigado.
Rimos. Ela é adorável e assustadora. E nem parece que está chegando aos oitenta. Deve dormir em formol.
- Alfieeeee?
- Sim?
- Se falar isso em voz alta, eu te castro! Ah, e cuida desse joelho, não espera tua filha se formar. Ah ah ah.
Como ela faz isso? Nenhum encantamento de bloqueio que conjuro funciona com ela. Ainda bem que ela não conta tudo para o Davi, de outra forma, já estaria morto há muito tempo.
- Alfie?
- O que é, Dora? Eles vão me matar antes de eu chegar na reunião, pô!
- Cuidado com aquela putinha romana.
- Quem?!?
- Elisa...
- !!! Tem certeza?
Um levantar de sobrancelha me faz perceber a besteira que acabei de dizer.
- Ela está procurando especificamente por mim?
- Ainda não deu tempo de reprogramar diretivas. É só uma sonda de prospecção.
Sonda de prospecção ou agente de varredura é alguém que é infiltrado em uma estrutura para coletar fragmentos de informação, mapear conexões e se possível se aprofundar em linhas de conhecimento particularmente apetitosas. Normalmente se encontram semanalmente, quinzenalmente ou mensalmente com seu controlador (uma espécie de contato com autoridade) em reuniões previamente combinadas para reportarem-se e receberem ordens. Em outrsasEste dado, vindo de Dora, me dava certeza de que seria possível plantar uma valiosa semente de desinformação antes que a inevitável extração venha para ela. Há até a vantagem que seu desaparecimento tornará mais valiosas e verossímeis as bobagens que lhe contar. A pobrezinha, irá morrer por nada. C’est la guerre.
- Ele sabe?
Ela sorri e pisca um olho, como quem diz: “vai lá e impressiona”.
- Te devo uma.
- Hmpf! Pelas minhas contas, você me deve trinta e cinco, sua alma imortal e um poodle.
- Mercenária!
- Também te amo. – e sopra um beijo.
Vamos ao martírio, que venham os leões. Do corredor já ouvia a voz estridente de Ambrose, esbravejando em seu português de Chef francês de desenho animado:
- (...) e non óbstante, perrde son temp flerrrtando co’a mocinha da rrrecépcion. É uma vérrgonha!
Touché. Ambrose vai estar quase tendo um ataque apoplético durante a reunião, estará o tempo todo procurando uma chance de me alfinetar, dirá que sou um “anarrquist”, um “irresponsable” e no fim das contas não vai dar a mínima para o que vou dizer. Ótimo, um a menos. Entro e faço a vênia:
- A água percorre seu ciclo mas sempre volta a Ter com o mar.
- Porque é sempre bom estar-se entre os seus.
Uma vez que é Davi quem responde pela presidência do Sinédrio, talvez não seja tão ruim. Davi, originalmente Carlos Davidovicz, foi o primeiro brasileiro a ser admitido no exclusivo circuito interno da Ordem. Menino-prodígio, sempre foi o mais destacado no Colégio Militar onde passou a infância e a maior parte da adolescência. Todos os instrutores o cotavam para as láureas na Academia de Agulhas Negras, e alguns até anteviam-no na Escola Superior de Guerra. No entanto, frustrando todas as expectativas, ao fim do último período, decidiu-se por ingressar a um seminário. Foi como se houvessem fuzilado todo o corpo docente, dizem até que tamanha decepção apressou a reforma do Major Ferreira, comandante já há trinta anos e mais fervoroso profeta do futuro do rapaz.
O fato é que concluiu, formou-se e apesar de seu desempenho assim o permitir, não foi nomeado orador da turma de formandos nem recebeu menção honrosa em sua colação de grau, teve sua foto retirada da galeria de honra do Colégio e falou-se até que foi obrigado a sair pelo portão de serviço da Escola Preparatória.
Quando chegou em casa, o quadro era desolador. Seu pai dizia-se quase morto de vergonha e desgosto. O sonho do velho Karol sempre fora seguir carreira militar, mas como seu nível social e sua nacionalidade polonesa o impedira de concretizá-lo, como muitos pais àquela época, transferiu seus sonhos a seu primogênito. E este agora o dilacerara.
Dona Lurdinha ao contrário, vibrava de felicidade quando o filho a informara por carta sobre sua decisão. Não que fosse tão pia, mas um filho padre render-lhe-ia uma posição de destaque entre as Filhas de Maria. Lugar este que seu marido perdera definitivamente na confraria de bêbados que se reunia no botequim do seu Germano. Enfim, uma vitória dupla: um filho padre e um marido em casa. No entanto a ela também estaria reservada uma generosa cota de aflição. Ao seminário de Botucatu fora mandado o jovem Davidovicz por seu pai, “para ficar o mais longe possível de seus olhos enquanto não amargasse o desagravo”, como confidenciou o pai com seus amigos remanescentes do seu Germano.
O rapaz, como seria de se supor, caiu como uma benção do próprio Altíssimo naquele celeiro de homens bons mas não muito perspicazes. O rapaz destacou-se no grego, latim, filosofia, hermenêutica, e todas as disciplinas consideradas mais difíceis pelos colegas. Nas mais fáceis, os professores usavam suas avaliações como gabarito para corrigir as demais. Rapidamente recebeu o epíteto de Tomás de Botucatu e todos com muita admiração não sem uma ponta de inveja o chamavam assim. O que lhe seria decisivo é que nessa época, nos ombros do jovem brilhante fixou-se o olhar cobiçoso da Ordem de Iscariote, na forma de um nosso infiltrado.
Por aqueles dias, encontrava-se por lá um homem de alma profundamente aguda, um dos maiores teóricos de nossa ordem e que a custo de muita influência da própria Grande Serpente, evadira-se a uma investigação em que fora envolvido em Córdoba. Este homem, de nome Diego Velasquez, fora acusado de cometer e propagar heresias, ser adepto de desvios sexuais vários e alguns crimes particularmente hediondos. Diga-se de passagem que todas as acusações eram verdadeiras e todas as transgressões foram cometidas no coração de um tradicional reduto romano (como em nossos círculos é pejorativamente conhecida a Santa Sé em geral e seus braços seculares em particular, tanto ostensivos como ocultos). Bem, nosso homem vislumbrou no rapaz todos as virtudes e vícios que compõem um grande homem da antiga Ordo Iscarioti, e resolveu trazê-lo para nosso deleite e tormento. Velasquez era um homem fascinante não só para os noviços, de forma que em pouco tempo eram próximos. Próximos demais. A direção local, que desconhecia o histórico do Espanhol, via com muito bons olhos esta associação, acreditavam que ao potencial do jovem seria acrescido a carga de experiência do quase ancião.
Em menos de três anos, o jovem estava anos-luz à frente dos outros e já era uma serpente adulta, bem treinada e extremamente perigosa. Levando-se em conta que era um conjurador de grande talento, era uma questão de tempo para que superasse seu mestre. E, o inevitável aconteceu em uma noite muito escura de um outono perdido. Quando se dirigias a uma de suas habituais visitas na hora morta à cela do já então conhecido como Davi, Velasquez o encontrou como que conspirando com uma criatura que seria inequi
- Tome assento, mestre Alfredo. Nosso Sinédrio, temo, será longo.

Um comentário:

Thaís disse...

Hummm boas cronicas! Mas tenho uma dúvida. Quando vc se refere a Ordem seria apenas uma metáfora ou uma seita?